terça-feira, abril 28, 2020

«A senhora dona Justiça nunca foi muito respeitável»


No meu trabalho diário de pesquisa descobri uma crónica de Augusto Abelaira (que à época "escrevia na água"...), que assinala - muito bem - o absurdo de  uma sentença jurídica, dentro do semanário "O Jornal" de 18 de Abril de 1980. 

É compreensível que me tenha passado ao lado, porque com a bonita idade de 17 anos, tinha com certeza coisas mais interessantes  para pensar, que na justiça. Justiça que, infelizmente, continua a ser o "calcanhar de aquiles" da nossa sociedade.

Crónica da qual transcrevo duas partes, que nos deixam no mínimo de boca aberta:

«A um leigo não é fácil discutir as decisões de um tribunal, os pormenores técnicos que levaram a essas decisões (e já não falo dos factores de ordem subjectiva). Mas há uma coisa que lhe é fácil e que espontaneamente se traduz nas suas reacções: o espanto e até a indignação. O espanto e a indignação, porque os espontâneos, nenhuma ordem (desordem?) jurídica pode negar. E que outra coisa se não o espanto e a indignação pode provocar a um leigo com um mínimo de sentimentos humanistas a recente sentença que condenou Carlos Antunes a quinze anos de prisão, Isabel do Carmo a onze e Fernanda Fráguas a dez e meio - e isto quando as penas pedidas pela acusação eram incomparavelmente menores? De resto, o próprio leigo pode informar-se de certas coisas e saber que tal decisão embora legal, não se insere coerentemente nos hábitos dos nossos tribunais.» [...]
A acusação pediu a absolvição de Fernanda Fráguas e tenho de admitir que essa acusação, ao proceder assim, se manteve no plano da lógica jurídica. O tribunal aplicou dez anos e meio a Fernanda Fráguas. E então: como aceitar tal discrepância? Impossível não haver aqui um absurdo qualquer. No pedido da acusação? Na decisão dos juízes? Não sei onde está o erro, mas recuso-me a admitir a racionalidade de uma tão contraditória situação. Entre absolvição e dez anos e meio de cadeia há um abismo inadmissível. Uma ordem jurídica que permite tamanho absurdo, que revela uma tal flutuação de opiniões não é ordem é desordem.»

Quando falei deste caso com um amigo mais velho, ele recordava-se e confirmou que tinha sido um escândalo na época. Acrescentou que as únicas pessoas que ficaram agradadas com a sentença foram as apoiantes de uma AD, que queria virar o país novamente para 24 de Abril e que estavam saudosas dos "tribunais plenários do outro senhor" e achavam que os "terroristas" tinham de ser punidos exemplarmente.

E depois em jeito de desabafo, a pensar nos tribunais que condenavam quem gostava da liberdade antes de Abril, nos juízes que condenaram o Carlos Antunes, a Isabel do Carmo e a Fernanda Fráguas e nesse senhor, mais do nosso tempo, que abre e cita a Bíblia para amesquinhar as mulheres, disse: «Para os nossos lados, a senhora dona Justiça nunca foi muito respeitável.»

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

12 comentários:

  1. Bem eu não conheço o caso, mas as Alegações da Defesa e do Ministério Público não vinculam o tribunal - por isso para a sentença ser absurda era necessário saber qual foi a prova produzida, se não houve prova então não deveria haver condenação, e a Defesa e o Ministério Público poderão (deverão!) recorrer

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    1. Eu não vou entrar em questões técnicas, Gábi. Fico-me pelo senso comum.

      Normalmente a acusação pede uma pena superior à que irá obter, e a defesa menor. E ao juiz compete o papel equilibrador da justiça.

      Não é normal o juiz aumentar a pena pedida pela acusação.

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    2. Será que não é normal?
      Actualmente o Ministério Público até não se pronuncia na maioria dos julgamentos nas Alegações sobre a condenação ou sobre a pena (para não ficar impedido de recorrer pede apenas Justiça).
      Não é um equilíbrio em que o Ministério Público e a Defesa se coloquem em extremos para que o Juiz dê uma decisão pelo meio - aí nem seria preciso o Juiz.
      É necessário avaliar a prova que é produzida, o Ministério Publico indica testemunhas de Acusação, a Defesa, o contrário, mas pode-se produzir prova de defesa com as primeiras e e da acusação com as segundas - os julgamentos podem ser fascinantes nessa perspectiva de se tentar descobrir onde está a verdade.
      O senso comum pode levar a juízos precipitados e injustiças e já tenho conseguido demonstrá-lo algumas vezes. Não com questões técnicas, mas com a percepção da necessidade de se atender a toda a prova e à imediação que tem lugar na sala de audiências e com a fundamentação de facto na Sentença - indicar porque razão é que se consideraram determinados factos provados, porque se atendeu ao documento x ou ao depoimento da testemunha Y, etc.
      Por exemplo pode o Ministério Público pedir a absolvição, o Juiz absolver, e a sentença ser absurda porque havia prova ou o contrário. Importante é saber qual foi a prova produzida no julgamento e se na Sentença se fez uma adequada apreciação da prova e depois uma correcta aplicação do Direito.

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    3. Depende tudo do que consideramos normal ou não, Gábi.:)

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  2. É bem verdade. Todos os dias lemos notícias sobre sentenças que nos deixam de boca aberta. Ainda ontem li que o STJ, reduziu e suspendeu a pena a um réu que abusou de duas crianças de 6 e 9 anos.
    Abraço e saúde

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    1. Pois é, Elvira. Normalmente acontece o contrário, "roubam-se anos às penas", algumas se uma forma escandalosa. Tanto bandido condenado com "penas suspensas"...

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  3. Sammy, o paquete28/04/20, 20:03


    Reconheça-se que seria impossível, no imediato, dar cumprimento ao que deveria ter acontecido a seguir ao 25 de Abril e não aconteceu.
    Mas o mais gritante incumprimento, passou-se com a justiça.
    Por ali continuaram muitos dos que, nos Tribunais Plenários, tinham condenado quem em tempo de ditadura lutara pela liberdade.
    O julgamento dos pides é o maior atentado, a maior ofensa, aos que combateram a ditadura, a todos nós.
    Um escândalo sem nome, um terrível amargo de boca.
    Claro que não é justo generalizar, mas pelo que «vejo, oiço, leio», os juízes podem saber do que vem nas sebentas, mas a maioria não evidencia cultura, sensibilidade, bom senso, maturidade e são de uma vaidade e de uma arrogância, desprezíveis.
    Aos juízes quase se poderia dizer o que Julia Roberts, no papel de Erin Brockovich, diz dos advogados, cito de memória: «Sabe porque as pessoas dizem que vocês são uns sacanas?: É porque são mesmo!»

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    1. Sim, o Sammy deve ter isso bem registado na memória.

      Ainda hoje há quem diga as piores coisa do PREC, porque só se recordam dos "oportunismos", esquecem a generosidade de quem não derramou sangue contra quem os explorava, humilhava e torturava... e acabaram por voltar, a pouco e pouco, para os mesmos lugares que ocupavam (só os pides é que tiveram azar, o Spínola não conseguiu criar uma "outra coisa", em sua substituição) a 24 de Abril...

      E a justiça (tal como a igreja...), nunca deixou de estar no "lugar mais quentinho", bem junto aos poderosos...

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  4. Existem casos idênticos com sentenças totalmente diferentes. A lei é a lei mas é apenas para alguns... emdinheirados.. E sei do que falo.

    O resto é palha que arde sem se ver.

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    1. Sim, a justiça todos os dias nos prova o quanto é desigual, Ricardo...

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  5. Por tudo aquilo que se tem passado no seio da justiça. Quanto a condenações não estou muito convencido de que a justiça tenha feito, corretamente, justiça.

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    1. Todos sabemos que não, Edum, até pelo tempo que os processos demoram, muitos até à sua prescrição...

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