segunda-feira, abril 30, 2007

Conversas de Abril (III)


Uma das coisas mais bonitas da nossa Revolução foi a grande lição de democracia e civismo, dada por todos aqueles que foram vitimas da PIDE. Não vimos ninguém aos tiros, a vingar a vida do pai, da mãe, do filho, da filha, do irmão, da irmã, do avô, da tia ou do tio.
Todos acreditaram na possibilidade de se fazer justiça pelos canais legais, através dos tribunais. Muitos ficaram desiludidos, por assistirem à impunidade de muitos dos carniceiros, que os torturaram de todas as formas possíveis, algumas das quais, nem nos passam pela cabeça. A maior parte passou apenas meia dúzia de meses na prisão, depois voltaram a ser cidadãos livres, como se fosse possível apagar o seu passado vergonhoso, com uma borracha...
Mais grave foi assistirem, quase duas décadas depois, à condecoração de dois inspectores da PIDE ou DGS, pelo governo do professor Cavaco Silva.
Estas palavras são dedicadas, inteiramente, aos resistentes antifascistas, quase todos do PCP, que cumpriram dezenas de anos nos presídios do regime, sem baixarem os braços na luta pela liberdade e pelo sonho da construção de uma sociedade mais justa.
Eles nunca desistiram de sonhar nem de lutar, nem mesmo quando começaram a ser empurrados pelos oportunistas de verbo fácil, que apareceram, apostados em agarrar as cadeiras confortáveis do poder.

Quando penso em homens como Alberto de Araújo, Bento Gonçalves, Alex Dinis, Militão Ribeiro, Dias Coelho, Soeiro Pereira Gomes, Pedro Matos Filipe, Mário Castelhano, Jacinto Vilaça, Joaquim Montes, entre tantos outros, que deram a vida pela Liberdade, esqueço tantas histórias e sinto-me, profundamente, comunista...

A ilustração que acompanha este texto foi pintada por Rogério Ribeiro, para o livro "Até Amanhã Camaradas", romance de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal).

Conversas de Abril (II)


Numa mesa de café, um amigo socialista, farto das conversas à volta dos diplomas e da licenciatura de Sócrates, perguntou aos presentes, o que aconteceria, se aparecesse nos jornais, que o deputado "fulano tal" do PSD (disse o nome e tudo...) tinha sido bufo da PIDE e que agora era um predominante democrata?...
Provavelmente ninguém levava isso a sério, nem mesmo o "24 Horas". Não iria passar de uma difamação, de uma beliscadura ao bom do nome do senhor.
Esta lembrança foi logo aproveitada pelo Rogério, para recordar um almadense (mais uma vez com nome...), que até ao dia 25 de Abril era um nacionalista convicto, com avença da PIDE como informador e que logo no dia 26 tornou-se um fervoroso comunista, daqueles que até sabem a letra toda do "Avante Camarada".
O senhor continuou a fazer a sua vida próxima de algumas colectividades, quase da mesma forma, passando de "bufo" a "controleiro", sem qualquer revolução.
Na mesa houve unanimidade num ponto: «os extremos acabam sempre por se tocar.»
Todos nós sabíamos que nos tempos de Liberdade, a disciplina, a autoridade, o controle, e até algum secretismo, só se encontravam no PCP.
Talvez o homenzinho, falho de carácter, nem estivesse assim tão errado. Como já estava habituado a fazer relatórios, fazia-os na mesma, embora com outro destinatário.
Quando eu perguntei se nunca ninguém o tinha denunciado, veio a resposta do costume: «As pessoas que sabem, inclusive comunistas, que foram prejudicados por ele, fingem que é mentira, os outros, mais ingénuos, acham impossível um "comunista a sério", ter passado pela PIDE.»

quinta-feira, abril 26, 2007

As Árvores da Minha Terra


As árvores da minha terra são os sobreiros, não os raquíticos sobreiros do Alentejo que até os naturais apoucam, chamando-lhes chaparros, mas árvores fortes, altas, imponentes que três homens, ou até mais, teriam dificuldade de abarcar. Conheço um a um cada sobreiro dos Pereiros e sei o ruído que o vento faz na sua copa no Inverno, quando criava o ambiente fantástico para as histórias da minha avó Rosalina.
Duram vidas e vidas, os sobreiros da minha terra, e o do Vale Frechoso já era adulto no tempo do meu avô.
Pelo solstício de Inverno, mandava a tradição que os rapazes cortassem furtivamente uma grande árvore para acenderem uma fogueira enorme no adro da igreja e para esse auto de fé o meu avô recomendava sempre o sobreiro do Vale Frechoso que ficava na extrema da sua propriedade e lhe ensombrava a horta e prometia-lhes vinho à discrição para aquela noite de festa.
Este foi um dos raros sobreiros mal amados dos Pereiros, mas já então era tão corpulento que se tornou impossível abatê-lo o que o salvou de uma morte certa.
A última árvore sacrificada nesta celebração, um sobreiro, ou uma oliveira, já lá vão setenta anos, desencadeou uma forte repressão por parte das autoridades concelhias que chegaram tarde para evitar o abate, mas ameaçaram prender todos os homens, se a queimassem.
Passou o Natal, estava a chegar o Ano Novo e aquele monte de lenha ali estava no meio do adro á espera de destino! E aquela festa que sempre fora dos homens e principalmente dos rapazes, foi então feita pelas mulheres que, sorrateiramente, lhe deitaram o fogo, com a coragem que àqueles faltou.
Terá sido o último ano em que se celebrou, pelo fogo, o prenúncio do crescer dos dias e o sobreiro do Vale Frechoso lá continuou majestoso, espalhando os seus ramos e a sua sombra num raio de muitos metros, parece que não passa um ano por ele, como se diz aos velhos, quando os revemos.
Que a sorte e o deus das árvores proteja os sobreiros dos Pereiros contra as pragas que estão a matar os chaparritos do Alentejo que, embora feios, magrizelas, raquíticos, têm, como os nossos, o direito de viver e de ser felizes.

Mais um texto de Joaquim Nascimento...

quarta-feira, abril 25, 2007

Abril Sem Idade


Abril é um poema sem idade
Que invade o sonho dos poetas
E lhes lembra a Praça da Liberdade
Que encontraram de portas abertas

Fizeram da praça uma canção
Que percorreram de mãos dadas
Com o povo e as forças armadas
Dando vivas à Revolução

Saudaram os capitães-coragem
Erguendo um cravo encarnado
E gritaram de punho fechado
- Já chega de malandragem!

Apesar dos anos passados
Continuam na Praça da Liberdade
E exclamam encantados,
Abril é um poema sem idade!

Este poema foi escrito por mim para uma colectânea de poetas de Almada, da SCALA, publicada pela Junta de Freguesia da Charneca de Caparica em 2001, nas comemorações da Revolução, com o título "Abril Depois de Abril".
Escolhi o belo cartaz da autoria da pintora Vieira da Silva, para ilustrar o poema.

terça-feira, abril 24, 2007

A Madrugada Esperada



Não estejas assustado
Esta guerra é diferente das outras.

Acredita em mim,
Desta vez vale mesmo a pena
Entrarmos neste combate.

Porquê?
Oh rapaz, nós vamos libertar o país.
Já pensaste nisso? Não?
Então pensa,
Amanhã podes ser um herói,
Vivo ou morto, tanto faz!

Não me olhes com essa cara,
Esta estrada tem um só sentido.


É isso mesmo que estás a pensar
Já não podemos voltar atrás
Estão todos à nossa espera...
Quando é que partimos?

No começo da madrugada.
Sinto que vai ser uma hora boa...
Estamos cada vez mais perto do sonho.
A Revolução chama-nos em Lisboa.
Esta fotografia é do golpe militar de 28 de Maio de 1926, quase quarenta e oito anos antes de Abril. Simboliza a longa espera.
O poema é meu...

segunda-feira, abril 23, 2007

Um Livro à Minha Escolha


Li a "Engrenagem" de Soeiro Pereira Gomes com apenas catorze anos.
Foi um livro e tanto, ao ponto de me acender uma luz na consciência...
Descobri, pela primeira vez, a forma como o capitalismo se movimentava no mundo, destruindo quase tudo à sua volta... através das mil promessas que fazia, quase sempre falsas, na transformação do mundo. Neste caso particular relatava a passagem de alguns agricultores em operários e a resistência do Zé Lérias...
O livro não é uma obra prima, mas nunca mais esqueci a mensagem de Soeiro Pereira Gomes.

sábado, abril 21, 2007

Vozes de Abril


A participação da sociedade civil na Revolução de Abril, quase que não tem rosto, tem sim bonitas vozes, como as de Zeca Afonso, com a sua "Grândola Vila Morena" - que continua a ser o Hino da Liberdade - e de Paulo de Carvalho, com o seu "E Depois do Adeus", canções utilizadas como senhas do Golpe Militar, difundidas na rádio portuguesa de uma forma decisiva.
Claro que as vozes que ficaram para a história do dia 25 não se ficam por aqui. Há ainda a de Luís Filipe Costa, que leu o primeiro comunicado do MFA na rádio, a de Francisco Sousa Tavares, que falou de megafone, para a multidão que encheu o Largo do Carmo e pedia a capitulação de Marcello Caetano e companhia, para acalmar os ânimos...
Mais importantes ainda, foram as vozes anónimas do povo que saiu a rua e gritou em uni sono, vivas à liberdade e aos militares que estavam apostados em acabar com 48 anos de ditadura fascista. E Acabaram!

sexta-feira, abril 20, 2007

Cravos de Abril (IV)


Vasco Gonçalves teve a particularidade de ser o único oficial superior que aderiu à preparação do movimento militar da qual resultou o 25 de Abril. Por esse facto acabou por ser bastante importante e respeitado no seio do MFA.
Durante o célebre e agitado “Verão Quente”, chefiou quatro governos provisórios. Ficou conotado com o PCP desde essa altura, por ter permitido os avanços que todos conhecemos, que culminaram com o 25 de Novembro, em 1975
Apesar de já não estar entre nós, o Companheiro Vasco ainda é recordado por muito boa gente pelas medidas que tomou em benefício dos menos favorecidos da sociedade portuguesa de então, enquanto primeiro-ministro.
A imagem que guardo de Vasco Gonçalves, que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, é a de uma pessoa extremamente humana, generosa e solidária.
A foto que acompanha o texto é mais uma vez de Alfredo Cunha.

quinta-feira, abril 19, 2007

Conversas de Abril (I)


Sei que a Revolução de Abril quase que deixou de ser tema de conversa nos nossos dias, em casa, no trabalho e nos cafés. As únicas pessoas que ainda falam, do antes e depois, de mil novecentos e setenta e quatro, são os investigadores, os saudosistas (de ambas as "barricadas"), e alguns jovens, curiosos com as histórias revolucionárias do regresso da liberdade. Estes últimos costumam ficar desiludidos quando descobrem que a Revolução foi de cravos e não de sangue. Têm dificuldade em vislumbrar uma revolução sem mortos e feridos, de ambos os lados, provavelmente influenciados pelos filmes repletos de heróis mortos e pelos telejornais demasiado violentos.
Já era crescido quando tive consciência de que um dos factores que mais contribuiram para o sucesso do 25 de Abril, foi o secretismo com que foi preparada toda a operação militar.
O facto de não haver civis envolvidos, ajudou, e muito, a que fosse possível manter em segredo toda a planificação do golpe. A disciplina e os códigos de honra militares fizeram com que não transparecesse quase nada para o exterior. Os "Capitães" dizeram apenas o indispensável a alguns antifascistas, para que fosse possível formar alguma rectaguarda, de apoio popular, caso fosse necessário.
Foi por essa razão que Eduardo foi completamente apanhado de surpresa, na Foz do Arelho, enquanto vagueava pela praia, sem saber muito bem o que fazer da vida...
A Revolução acabou por vir mesmo a calhar para ele, embora admitisse que era um, entre muitos (quase a totalidade da população portuguesa...), que apesar de fazer a oposição possível ao marcelismo, não sabia que se estava a preparar um golpe democrático nos quarteis. O 16 de Março também ajudara muito boa gente a baixar os braços, muito pela forma como foi "vendido" nos jornais "censurados".
Claro que no dia 26 de Abril apareceram milhares de revolucionários, em quase tudo o que era sitio, a dizerem que afinal sabiam o que se estava a passar... só que tinham permanecido em silêncio...

A foto que ilustra o texto foi tirada no dia 25 de Abril por Júlio Diniz, fotógrafo almadense.

segunda-feira, abril 16, 2007

Cravos de Abril (III)


Ernesto Melo Antunes foi um dos homens mais importantes, antes, durante e depois de Abril.
A sua cara fechada e a discrição esconderam um homem de grande carácter, determinação e coragem.

Para muitos estudiosos Melo Antunes foi o elemento mais politico do MFA, não sendo por isso de admirar que tenha sido o principal mentor do seu programa.

Foi várias vezes ministro dos governos constitucionais, tendo participado em alguns aspectos decisivos da nossa sociedade, como a descolonização, que acabou por se revelar um autêntico fracasso, com todos sabemos.

Perante o avanço da esquerda, Melo Antunes elaborou o "Documento dos Nove", juntamente com outros militares moderados, que não se reviam no trajecto da Revolução. Este documento acabou por ser um factor determinante para a realização do 25 de Novembro de 1975, o golpe militar que voltou a colocar Portugal, no caminho da democracia.

Infelizmente é mais um Capitão de Abril, que já não está entre nós. A simplicidade e discrição de Ernesto Melo Antunes fizeram com que nunca lhe fosse reconhecido o seu real valor, como elemento fundamental da Revolução dos Cravos.

domingo, abril 15, 2007

Férias Forçadas em Abril


Quando voltava a casa Eduardo descobriu um movimento estranho à volta do prédio onde moravam, na Ajuda. Sem dar nas vistas continuou a caminhar e virou na próxima esquina. Andou perto de uma hora com a discrição possível. Já em Alcântara entrou num café, onde bebeu uma água e descansou um pouco, ainda sem saber muito bem o que fazer. Sabia que não podia voltar a casa. O aviso que lhe fizeram, da última vez que tinha sido interrogado, que da próxima vez que o vissem por ali não regressava a casa, soava na sua cabeça como se fosse quase um disco riscado.
Telefonou a um amigo de confiança, para que descansasse a companheira, de que continuava em liberdade. Depois apanhou o comboio para as Caldas. Apesar de estar a um passo da aldeia onde nasceu, não disse nada a ninguém da família, para não os colocar em risco. Refugiou-se na casa de um casal amigo, na Foz do Arelho.
Foi nesta localidade que soube da Revolução, dez dias depois, pela rádio, que esteve ligada dia e noite... com o evoluir da situação, acreditou que era desta, que se acabava, de vez, com a ditadura.
No dia 26 de Abril regressou a casa, felicíssimo, logo no primeiro comboio da manhã...

Só soube desta história, seis anos depois, quando fui convidado para jantar na casa do Eduardo e da Isabel, no dia 15 de Abril de 1981.

quinta-feira, abril 12, 2007

Cravos de Abril (II)


Otelo Saraiva de Carvalho foi o verdadeiro homem da Revolução de Abril. Além de ter sido o seu principal estratega, é o Capitão de Abril que melhor simboliza todo aquele espírito revolucionário que se viveu em 1974 e 1975.
Foi também um dos homens com mais poder durante esta época, especialmente no "Verão Quente", pelo menos aparentemente. Poder que nunca utilizou para benefício próprio, fiel aos princípios revolucionários do MFA. Recusou cargos e promoções, inclusive a promoção a general de quatro estrelas, proposta por Spinola.
Por ter estado sempre presente, nos bons e mais momentos, continua a ser uma das figuras mais amadas e odiadas da Revolução.
Há mesmo quem o olhe como um homem cheio de contradições. Não acredito muito nisso.
Era um sonhador, acreditava no poder popular, por isso é que sempre revelou uma grande simpatia pelos partidos mais pequenos, de esquerda, ao ponto de ter enfrentado o PCP, que nunca lhe perdoou a afronta....
Esteve preso por duas vezes. Logo após o 25 de Novembro de 1975 e em 1985, acusado de ter feito parte das "FP 25 de Abril". Não acredito que tivesse culpa nas acções terroristas deste grupo. A única responsabilidade que lhe reconheço, foi ter confiado e feito amizade com as pessoas erradas. Pagou por isso, esteve preso cinco anos.
Quase trinta e três anos depois da Revolução, continuo a olhar para Otelo como o verdadeiro revolucionário de Abril, bem intencionado e muito ingénuo, ao ponto de acreditar na vitória do "Poder Popular"...
A fotografia de Otelo é de Alfredo Cunha.

quarta-feira, abril 11, 2007

Albufeira


Em Albufeira, se conhecer as ruas estreitas sobre a falésia, pode espreitar o mar e livrar-se do barulho das ruas, do excesso de alguns prédios que lhe tapam a vista e até dos turistas que se atropelam, coitados, por falta de espaço vital. Percorra, então, o que resta da Vila antiga debruçada sobre o mar, olhe a última casa de açoteia e chaminé rendilhada, sente-se num banco ali à mão e contemple o azul até à linha do horizonte, céu e mar, olhe o peneco e a praia e descubra que praia é uma razoável extensão de areia dourada e fina, e não um amontoado de corpos queimando ao sol.
Albufeira está a lidar mal com o seu crescimento que reproduz, inexoravelmente, o modelo de todo o turismo algarvio, onde agora introduziram o golf.
O programa Polis, na vila antiga, tenta corrigir alguns aspectos mais negativos - eles dizem impactos, talvez de tiros - mas o que é mais visível neste esforço inglório feito de poeira e desconforto é a incapacidade de conter os automóveis fora do seu perímetro, a iluminação de boite, o piso de supermercado e, principalmente, o crescimento excessivo das esplanadas em frente dos restaurantes, quando se esperaria que todo este espaço fosse devolvido livre aos cidadãos. E nas suas costas continuam a plantar prédios, modificando o perfil das colinas, ocultando encostas, barrando linhas de água!
Nestes restaurantes-esplanada onde até o pobre frango da Guia teria vergonha de ser apresentado, nunca vai encontrar uns carapauzinhos fritos, como os que a Edite faz e põe na mesa acompanhados de salada fresca que perfuma com com orégãos e de um arroz de tomate malandrinho.
Se for à praça do peixe, ainda os compra, quase a saltar. Regresse a casa, aprenda a amanhá-los, salgue-os com a dose certa de sal grosso, espere que o tomem, passe-os por farinha e frite-os então em óleo bem quente o que, não sendo simples, cabe dentro dos seus dotes culinários e vai ocupar-lhe boa parte da manhã.
Em Albufeira, deve espreitar o mar e, se apurar o ouvido, ainda pode escutar as horas certas batidas pelo relógio da torre, horas laicas pois sino e torre são da Câmara.
Eu costumo contá-las pelos dedos, para não me enganar.
Mais um texto de Joaquim Nascimento, frequentador assíduo de um dos bancos cá do Largo.

terça-feira, abril 10, 2007

Cravos de Abril (I)


Salgueiro Maia é o militar que melhor simboliza a Revolução de Abril, por ter mantido a nobreza tão rara nos grandes combatentes, de assim que saem vitoriosos, arrumam a trouxa e voltam para o seu mundo de sempre. Deixam o terreno pantanoso da política, disponível para os muitos oportunistas de verbo fácil, que quase se atropelam no meio da “lama”, preparados para tudo, apenas com um único objectivo em mente, a conquista do poder.
Foi também o primeiro Capitão a ser vencido pela “muerte”, talvez para continuar a ser recordado como o militar que conquistou Lisboa e encheu o Largo do Carmo de emoção, à espera da “bandeira branca” do Marcello e dos colegas de governo, que se esconderam no interior do quartel da GNR.
Se há alguém, entre os Capitães de Abril que merece um Cravo Vermelho, ele chama-se Salgueiro Maia.

A foto que acompanha o texto é da autoria de Alfredo Cunha.

quarta-feira, abril 04, 2007

O Monopólio das Palavras


Nunca esqueci as palavras de alguém que me é querido, quando me contou a história da sua passagem meteórica por um partido político. Por ser uma figura respeitada na cidade onde vivia, quase que foi empurrado para dentro de uma organização política, ainda nos tempos revoltosos. Aceitou o desafio, sem saber muito bem ao que ia.
Como não era burro, depressa percebeu que a democracia invocada nos discursos, um pouco por todo o lado, não passava de uma teoria para se espalhar pelos outros. Um dia, já cansado de ouvir sempre a mesma voz, que iniciava, mediava e terminava as sessões do partido, pediu a palavra.
Dirigiu-se ao camarada que tinha o “Monopólio das Palavras” e disse-lhe, olhos nos olhos, que a democracia não era feita a uma só voz. Quando o questionou, porque razão não havia espaço para mais vozes e opiniões nas reuniões, ouviu a desculpa, meio envergonhada, de que ninguém pedia a palavra e ele ia falando...
Antes de sair pela porta fora, para não mais entrar na sede, daquele ou doutro partido, ainda lhe deu um recado final, «Se gosta assim tanto de se ouvir e de ser o único a tomar decisões, devia ter escolhido um partido totalitário e não um partido socialista. Dessa forma não se enganava a si nem aos outros.»
Escusado será falar das histórias que inventaram, pouco tempo depois, para explicar esta saída pouco airosa, de um partido que continua a afirmar-se democrático.
Talvez esta história explique um pouco, porque razão, o nosso país, quase trinta e três anos depois da Revolução dos Cravos, continue tão afastado dos desígnios de Abril.
Lembrei-me deste episódio, por duas vezes, em meia dúzia de dias. O mais curioso foi isso acontecer em duas tertúlias, que deviam funcionar de uma forma distante dos monólogos. Senti-me incomodado por ver que há pessoas que aparecem nestes encontros apenas para se exibirem, como se estivessem num palco. Gostam tanto de se ouvir, que nem percebem (ou fingem não perceber...) que a sua ânsia de falar, além de roçar o ridículo, rouba espaço e tempo aos outros.

Esta litografia colorida é da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, publicada na "A Paródia", de 16 de Maio de 1900, num hino a todos os papagaios parlamentares. O desenho é de tal forma feliz que continua a fazer juz a todas estas "aves falantes" que nos rodeiam.