terça-feira, junho 30, 2015

E a Aventura Chegou ao Fim...


E é com esta bonita fotografia de Henry Cartier-Bresson , do nosso Alentejo, que acabo esta apresentação de bocados de um romance (que são pelo menos dois ou três...), de alguém que "foge" para o Sul e descobre o flagelo do suicídio, ao qual se somam dois homicídios, que alguém tenta que sejam entendidos como um adeus voluntário. 

Depois é toda uma caminhada em busca da verdade...

E em Julho prometo que  o "Largo" voltará ao formato normal...

segunda-feira, junho 29, 2015

Os Falsos Camponeses


«Apareciam por ali na tasca da Maria Russa disfarçados de camponeses, mas eram todos artistas. Pintavam, escreviam, esculpiam e filosofavam. 

Descobri que não só conversavam como riam, cansados de tudo, até de viver. Aquele almoço semanal que se prolongava até ao fim da tarde era quase o seu parque de diversões, onde a única coisa que ninguém podia, era dizer bem de alguém.

Um deles disse: «Pelas viagens que fiz, pela vida que vivi, tenho agora uma ideia bem precisa do mundo. Já não tenho ilusões. Na arte só me interessa o puro, o cristalino, o brutal, o que dói, o absoluto. Mas necessito de beleza para poder suportar tal sofrimento. É por isso que continuo a frequentar a casa de putas da Isaura».

Eu só estava ali na condição de permanecer em silêncio e invisível.

Um outro, de barbas e cabelo enorme falava na recusa, como o principal gesto humano. Anarquista convicto, defendia que a história tinha sido feita por aqueles poucos que disseram não, não pelos cortesãos e conselheiros, muito menos pelos cardeais cinzentos, que também navegavam em terra ao sabor do vento, embora fingissem ter a bênção do deus menor deles.

Num outro canto um antigo professor e pintor, também ele sem esperança nos caminhos percorridos, afirmava que a arte nasce e afirma-se onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal. É essa ânsia que leva as pessoas à arte.

Baixou a cabeça desolado, por ver quase toda a gente a fugir para o vazio...»

A fotografia é de Willy Ronis.

domingo, junho 28, 2015

As Duas Bandas da Vila


«Uma das boas novidades que descobri, foi que a Vila continuava a ter, não uma, mas duas bandas filarmónicas, ainda por cima centenárias.

Quando falei no assunto ao Nicolau, não se mostrou assim tão entusiasmado, contando que uma delas, a “Democrática” estava a viver uma crise quase agonizante, só mantinha a banda graças a um maestro antigo e falho de ideias, que com meia dúzia de músicos teimosos, ainda se encontravam uma vez por semana, para desenferrujar a língua, os dedos e os instrumentos.

A “Musical”, essa continuava vivinha da silva, regida por um maestro daqueles que se sentem nas nuvens quando estão com a batuta nas mãos e com muitos jovens a aprenderem o solfejo.
Era o mesmo maestro que eu encontrara na rua e depois no salão, com roupas brilhantes e gestos clássicos, que se devia sentir mesmo um verdadeiro artista nos palcos e nos coretos das terras por onde aquele grupo espalha a sua musicalidade.
Foram encontros casuais. O primeiro na rua e o segundo na sua “casa”. Este último aconteceu quando passei na rua da Colectividade e ouvi a banda, quase como na canção e acabei por entrar, curioso, depois de espreitar.

Foi uma agradável surpresa. Sentei-me na plateia do Salão de Festas e por ali fiquei, quase perdido no tempo, encantado com os sons agradáveis que aqueles instrumentos afinados libertavam, nas mãos e nas bocas dos rapazes e das raparigas, cheios de sonhos, com toda a certeza e propriedade.

Ao olhar para os seus uniformes, percebi que esta era a segunda vez que nos cruzávamos. Ouvi-os tocar na primeira vez quase por acidente, quando saíram à rua numa data festiva. Gostei de sentir a alegria que deixaram nas ruas e também de descobrir que a maior parte dos músicos eram jovens.»

A fotografia é de Luís Eme.

sexta-feira, junho 26, 2015

O Homem que Gostava de Outros Homens


«Ainda hoje consigo ver o homem, a desenhar com palavras a antologia da sua vida, de Paris e S. Francisco, sempre preso à boémia, que nessa altura, segundo ele, era uma coisa barata e distante da moda. Confessou estar cheio de saudades do cheiro a tinta do seu atelier. Falou-me como se fosse um Pomar ou um Cargaleiro, só faltou dizer que conheceu Picasso e o tratava por tu.

Vim a saber depois que tinha uma vida para cada doente. Ao meu colega de lado apresentou-se como homossexual e bailarino e contou-lhe histórias dos palcos com música e muito bailado, até nas salas russas.

Na hora das visitas percebi que era casado e tinha duas filhas que conheci. Uma delas, mais simpática, disse-me dentro de um sorriso, para não fazer caso das suas maluquices. Não voltámos a falar mas às vezes pergunto-me: porque razão tinha ele aquela quase necessidade de se apresentar como artista de qualquer coisa e como um homem que gostava de outros homens?

Aliás, esta era a única coisa que não variava nas suas histórias.»

A fotografia é de Roger Mayne.

quarta-feira, junho 24, 2015

Morar no Alentejo


«Morar no Alentejo é uma descoberta diária. Os silêncios são quase um disfarce, de um povo que gosta da tranquilidade e parece usar e abusar do bom senso, sem precisar de empurrões ou de cabeças emprestadas para fazer as suas escolhas no dia a dia.

Acho que já tenho um pouco de prenuncia. Quase sem me aperceber, tento falar como eles, com mais musicalidade e graça, porque quero ser um deles.

Sei que a miséria está a voltar, lentamente. As pessoas com mais idade, que cresceram com a companhia do pão amassado pelos primos do diabo, duro e escuro, apesar de já estarem meio dobradas pelo peso da idade, levantam a cabeça e dizem-se preparadas para voltar a dar o peito às balas, para o que der e vier.

Na agora minha casa, erguida pelo avô, há muitas marcas, quase todas familiares. Na rua nem por isso. Mas há algo que me junta, mesmo a desconhecidos.

Entro na taberna e apetece-me pagar copos de vinho tinto a todos aqueles homens com cara de velho e fazer um brinde à fraternidade. Nunca os vi, mais gordos ou mais magros, mas reconheço-os do mundo e também de alguns livros do Manuel da Fonseca.»

A fotografia é de Artur Pastor.

terça-feira, junho 23, 2015

A Laura Queria Mais...


«Lera demasiados policiais para aceitar uma história destas. A vida não era um filme, muito menos uma telenovela. Era muito mais complexa, difícil de contar em apenas hora e meia.

Será que era tão difícil perceber que se alguém comprava prazer era porque não estava muito interessando em compromissos?
Foi por isso que Nicolau deixou de lhe telefonar e de ser seu cliente.
Pensou que o melhor era cortar o mal pela raiz.

Mas a Laura queria mais. As mulheres querem quase sempre mais que nós.
Falámos pouco da Laura, falámos sim das mulheres que tínhamos desiludido pela vida fora, com razões fortes para nos odiarem. E que sim, o amor tem mesmo medidas, ambos estávamos certos de que todas aquelas que desfilaram na mesa, amaram-nos pelo menos dez vezes mais que nós.

Por muito cavalheiros que queiramos ser, é impossível sairmos-nos bem quando dizemos que não amamos, pelo menos como devíamos amar, uma donzela que se acha terrivelmente apaixonada.

Nunca mais temos direito a perdão. Mesmo que nos voltemos a encontrar uns anos mais tarde num lar de velhinhos.»

A fotografia é de Helmut Newton.

segunda-feira, junho 22, 2015

O Canto dos Homens do Sul


«O que vai ficar, são aqueles minutos de canto alentejano, que ainda me fazem estremecer, quando me imagino a erguer a voz, juntamente com aqueles homens que continuam a resistir a quase tudo.

Uns dias depois encontrei o Augusto, que me falou com orgulho da primeira vez que se misturou com os homens que cantavam. Depois de ouvir o tio Abílio desabafar com o pai:
- Compadre cantamos mesmo mal, mas é tão bom juntarmos as nossas vozes. Até as nossas dores se soltam com o suor e se misturam com as cantigas.

Augusto ficou de tal maneira impressionado com as palavras do amigo do pai, que assim que pode, apareceu, para ver se sentia aquilo. E sentiu. Aquele canto, que agora é conhecido como cante, entrava-lhes mesmo pela alma adentro.»

A fotografia é de Ernst Haas.

domingo, junho 21, 2015

O Casal Italiano


«Habituara-se a ver e a ouvir um casal italiano idoso no café da Alice, que ofereciam uma musicalidade agradável ao espaço.

Falavam de gente que ele gostava, como Pirandello ou César Pavese. O primeiro explorava a má língua e a modernidade nos palcos, o segundo a discrição e a beleza poética.

Vim a saber mais tarde que a Isabela era sobrinha neta da mulher de um dos filhos de Luigi Pirandello, o Fausto, que era pintor. Na infância viveu no mesmo prédio que eles e cresceu fascinada pelo teatro de Pirandello. Ela tem um irmão, o Roberto, que quando era pequeno passava o tempo todo a escutar conversas, que depois transformava em pequenas peças para a família, a quem cobrava bilhetes.

Infelizmente ou felizmente tornou-se advogado, ou seja, pisou outros palcos pela vida fora.

O outro irmão, Marcelo, era mais activo no exterior, adorava pregar partidas e sustos à vizinhança. Isabela confessou que nunca percebeu quem era o verdadeiro artista lá de casa, sabia apenas que eram ambos divertidos e gostavam que os olhassem como uma dupla que precisava de passar uns tempos num hospício.

O marido de Isabela limitava-se a sorrir e a acender cigarros, que raramente acabava de fumar. Preferia as palavras de César Pavese. Era mais dado às poesias que às trafulhices da vida do Pirandello e dos cunhados.


Eram boa gente, percebia-se que ainda acreditavam na natureza humana, apesar de já terem ultrapassado a meia idade.»

A fotografia é de Paola Saeti.

sexta-feira, junho 19, 2015

Falsos Abandonos


«Quando entrámos num pequeno café descobri um rosto conhecido. Um escritor fora de moda estava a escrever num pequeno bloco, provavelmente a muitos quilómetros de distância daquele lugar.

Uns anos antes lera uma reportagem sobre ele que fazia manchete do seu afastamento do mundo da escrita, cansado do proteccionismo dado aos medíocres. Dizia que nunca foi do negócio, sempre foi da paixão pelas palavras. 

Embora fosse difícil, Albano ia tentar ser um homem normal na aldeia onde crescera, onde o campo quase que abraçava o mar e campo. A jornalista que assinara a prosa, escreveu que Manuel Matos matara o escritor Albano Garcia de Matos, para sempre. 

Apeteceu-me cumprimentar o escritor, mas a última coisa que queria era quebrar a magia do homem que continuava a escrever, apesar de todos os indícios contrários.»

A fotografia é de Willy Ronis.

quinta-feira, junho 18, 2015

A Montra dos Escritores Esquecidos


«Eram seis mas só dois tinham tido sucesso junto dos leitores, embora na actualidade estivessem esquecidos. E ainda por cima tinham o problema terrível de continuarem vivos.

Se morressem talvez algum livreiro se lembrasse de lhes fazer uma montra, de recordá-los. E se a coisa resultasse, de voltar a editá-los.

Tinha ouvido dizer mal de todos eles. Não passavam de um grupo de velhos quezilentos, que estavam proibidos de morder a língua durante a tarde que se encontravam, porque estavam sempre prontos a disparar em todas as direcções, como qualquer “pistoleiro” do velho oeste.

Estava longe de ser um crédulo, era mais parecido com o S. Tomé, queria ver para crer. Por isso tinha de aceitar aquele convite caído das nuvens.

Deve ter sido por isso que estranhei o ar amistoso e a forma simpática com que me receberam, a meio do almoço chegaram mesmo a dizer que eu era um deles, como se me conhecessem melhor que eu próprio.

Alguém tinha falado de mim, pelos vistos bem. E como souberam que privara com Júlio Verne, Dinis Machado e o padre Felicidade Alves, pertencia ao seu círculo, o que quer que isso fosse.

Falavam de tudo menos de política. Todos tinham sido comunistas na juventude. Mas quando se deu a Revolução de Abril já estavam curados. A Primavera de Praga foi mais que suficiente para perceberem que estavam no sítio errado, à hora errada.

Continuam a acreditar na igualdade e na justiça social, algo em que a maior parte dos comunistas não acreditavam nem acreditam. A solidariedade deles continua a ser praticada apenas entre pares e não para com toda a gente, algo que os define como seres humanos selectivos. Tal como os católicos, pensam que são uma casta especial. Os católicos acham-se donos do céu, os comunistas donos da terra…»

A fotografia é de Ferdinando Scianna.

terça-feira, junho 16, 2015

Abrir a Porta e Deitar Fora a Vida


«Acompanhou-nos ao café e começou a falar quase sem parar. Aproveitou as imagens da cheia no centro da Europa, para desejar que uma coisa daquelas chegasse à Vila, mesmo que fosse só à sua casa. Nem se importava de lhe abrir a porta. Olhámos um para o outro, com cara de caso, sem o interrompermos.

Ele continuou com o aparente disparate, a vivê-lo cada vez mais intensamente:
- Vocês não imaginam o prazer que me dava, ficar sentado numa cadeira do telheiro a ver todas aquelas merdices a serem levadas pela corrente.

Um minuto depois explicou-nos que falava das bonecas e dos bibelots da mulher, que durante anos lhe roubaram espaço e não lhe permitiram mexer em quase nada, da sala ao quarto onde apenas lhe era permitido dormir.

O seu mundo era a barbearia. Mas não era homem de guardar coisas, percebia-se que não gostava do passado. Era por isso que precisava tanto de ajuda, para deitar fora o que tinha sido a sua vida, desde que casara.»

A fotografia é de um autor desconhecido, retirada do blogue "Pombalinho", de Manuel Gomes.

segunda-feira, junho 15, 2015

A Barbearia Moderna


«Precisava de cortar o cabelo e entrei na primeira barbearia que descobri, sem clientes.

O homem de bigode, que me recebeu com uma vénia, convidou-me para me sentar numa das velhas cadeiras metálicas giratórias. 

Percebi que estava demasiado sisudo para um barbeiro. Já sentado expliquei-lhe o corte de cabelo que queria, ao homem que começou a dizer mal da sua vida, dos gadelhudos de todas as idades que entravam cada vez menos na sua casa. Frisou que há três anos que não aumentava os preços e mesmo assim, cada vez tinha menos gente para cortar o cabelo. Se as coisas não melhorassem, ia ter de fechar a barbearia.

Eu limitava-me a ouvir, sem muita vontade de alimentar aquele choradinho, que era comum a todos os lugares de comércio. Pelo menos falava da crise como se falasse do tempo, sem alterar o tom de voz, como se fosse preciso dizer alguma coisa para estabelecer o diálogo com o cliente.

Embora só cortasse cabelos, ele nunca usou a palavra cabeleireiro, como se isso fosse coisa de senhoras. Minutos depois, quando ele passou o espelho pela parte de trás, fiquei satisfeito com o seu trabalho. Paguei e saí, com ar de quem voltaria um dia destes.

Já na rua descobri que não ficara a saber o nome do barbeiro. Era pouco normal isto acontecer, apenas fiquei a saber que era o dono da “Barbearia Moderna”, nome entretanto gasto pelo tempo.»

A fotografia é de Robert Doisneau.

domingo, junho 14, 2015

O Lugar Certo


«Havia ainda outro acaso para este meu destino, a velha casa dos meus avós paternos, que num golpe de sorte ou de azar, acabou por ficar para nós, depois das partilhas.

Talvez os meus avós, vigilantes, soubessem que os meus pais não iam deixar todo aquele espaço ficar em ruínas. E aconteceu mesmo assim. Eles investiram parte das economias, com a desculpa de não deixarem fugir as raízes alentejanas, de que tanto se orgulhavam.

Apesar da sua simplicidade, tinha uma beleza especial. Ao contrário das casas das cidades, esta só tinha o essencial. Mesmo a estante era reduzida, só tinha mesmo livros para serem lidos. As paredes estavam quase todas em branco. A única coisa que sobressaia nas paredes da sala era a fotografia com o avô a entrar na Vila na sua carroça.

Sem que existisse uma razão em particular, o pai e mãe acabaram por aparecer menos vezes do que esperavam e a casa ficou praticamente fechada o ano inteiro. Eu também aparecia pouco, embora gostasse da Vila. 

Além das boas memórias e do sangue que me corria nas veias, havia mais qualquer coisa que me ligava a esta gente. Algo que não era facilmente explicável.

É demasiado profundo e não se explica muito bem às primeiras e às segundas. E como também nunca gostei de padres, de guardas nem de patrões, tal como o meu pai e o meu avô, sentia-me no lugar certo.»

A fotografia é de Fred Boissonnas.

sábado, junho 13, 2015

O Fascínio pelas Coisas do Outro Mundo


«Escutando frase daqui frase dali, fiquei a conhecer várias lendas que circulavam à volta da árvore. A mais simbólica era sobre o seu poder comunicativo, que fazia com que distribuísse mensagens por algumas pessoas. A mais estranha era a do episódio protagonizado por um homem céptico, que acordou numa certa manhã, disposto a cortá-la e a acabar com o sofrimento de todas as pessoas que passavam por ali, quase em peregrinação. Ninguém sabe muito bem o que aconteceu, mas a única coisa que uma moto-serra cortou foi o polegar do homem e não qualquer ramo. Embora alguns teimosos garantissem que ele tinha ficado sem a mão e até sem o braço. Rezava ainda a história de que a vítima nunca mais quis saber da árvore nem se aproximou dela.

Vim a saber depois que havia de facto um homem sem um polegar, cortado com uma moto serra, mas não naquela árvore. 

Fora mais uma das muitas invenções que fazem as delícias das populações, que precisam exageradamente de milagres e de coisas do outro mundo para salgar as suas vidas.»

A fotografia é de Luís Eme.

sexta-feira, junho 12, 2015

A Bola de Cristal com uma Porta Aberta para Outros Mundos


«Outra coisa quase do arco da velha, era a mulher que aparecia por ali ao dia sete de cada mês, munida de uma bola de cristal, que colocava em cima de uma mesa, que trazia no interior da sua Ford Transit creme, juntamente com uma poltrona, que lhe dava um ar de rainha de qualquer coisa.

Ninguém ficava indiferente à toalha que usava, que tinha um desenho que lembrava as velhas cruzadas, com guerreiros a travarem lutas com demónios de tamanhos e figuras dignos de qualquer casa de terror. E por ali ficava a senhora, à espera de clientes, com a bênção da árvore mais famosa da localidade, com a conivência das autoridades, que evitam meter-se com tudo aquilo que as pessoas diziam ser do outro mundo.

A par da sua bola, também vendia cremes, chás e pulseiras, que curavam dezenas de maleitas e afastavam os olhares maus.

Embora o Alentejo não fosse muito bafejado por milagres, nem estivesse pejado de crentes, havia muito gente que passava por ali, ao dia sete.»

A fotografia é de Ann Mansolino.

quarta-feira, junho 10, 2015

A Alice e a Avó Etelvina


«Falar nos meus avós fez com que a Alice confessasse que nunca teve avós, de e em qualquer lado. A única avó presente na infância, a Etelvina, nunca teve tempo para a ir buscar à escola e ainda menos para brincar com ela. E durante anos proibiu-a de a chamar de avó.

Na tentativa de esconder aquele drama, que ainda estava bem vivo num dos cantos da “caixa dos pirolitos”, desculpou a mãe da mãe, ciente de que deve ter sido um choque, ser avó tão cedo, ainda por cima com a vida de pernas para o ar. Sabia que havia uma idade para tudo e só os avós idosos podiam ser avós a quase tempo inteiro, sem fugas. A avó da Alice estava-se nas tintas para crianças. Não era única, por isso é que o mundo estava e está longe de ser fácil para a pequenada.»

A fotografia é de Elliot Erwitt.

terça-feira, junho 09, 2015

O Descapotável Azul


«Quando vi passar lentamente pelas ruas um descapotável azul, com um homem relativamente jovem ao volante, que ia cumprimentando as pessoas com quem se cruzava, estava longe de pensar que se tratava do padre da paróquia.

Era mesmo o padre Augusto, que segundo o meu cicerone e companheiro, apenas tinha dois defeitos, para padre claro, gostar de carros e de mulheres velozes. A tese dos carros estava provada, a das mulheres limitava-se a circular nas ruas que albergavam a má língua.

Mas nem tudo eram defeitos, reconheciam-lhe a virtude de tratar toda a gente da mesma forma, sendo incapaz de cobrar dinheiro de um funeral a alguém que vivesse com dificuldades. Talvez fosse por isso que lhe perdoavam o devaneio de ter um descapotável azul. Também não gostavam muito de o ver a fumar como uma chaminé, mas eram incapazes de lhe dizer alguma coisa.

Quem não gostava dele dizia que se tratava de um padre comunista com gostos capitalistas. E até faziam futurologia, dizendo que o padre Augusto não se faria velho por ali.»

A fotografia é de autor desconhecido (com um dos meus actores preferidos, o Steve McQuenn).

segunda-feira, junho 08, 2015

A Herança Perdida do Avô


«Ainda não tinha descoberto as palavras escritas e mesmo assim, na minha família toda a gente contava histórias. E o curioso é que toda a gente queria contar as melhores histórias.

Recordo-me de irem chamar o avô a casa como se fosse um cantor ou um músico, essencial para animar as noites frias do inverno, aquecidas com a aguardente caseira do tio Figueira.

O velho Freitas dizia que o mal foi a família ter ido à escola. Aprenderam outras coisas e perderam aquela magia, desaprenderam as histórias que passavam de boca em boca entre avós, filhos, netos, tios e primos. Mas também ele quis sentir o fascínio das palavras escritas e lidas...»

A fotografia é de Artur Pastor.

domingo, junho 07, 2015

A Mulher Solidão


«A primeira vez que a vi, estranhei encontrar tanta solidão numa mulher bonita. Achei estranho ver uma mulher, que não devia ter mais de quarenta anos, sozinha. Esquecido que nós, homens, preferimos muitas vezes enfrentar um tigre a uma mulher com garras.

Foi quando me foi apresentada pelo Nicolau, com uma história que fiquei a saber que fazia parte do anedotário da vila. Todos falavam dela como a Bela "corta pichas”, embora só tenha usado uma vez, uma pequena lâmina de barbear num desses pedaços de carne, que julgava ser apenas seu.

O sentimento de posse é terrível.

Muitos homens troçavam dela, nas suas costas, fingindo que estava longe de ser uma história glorificante para os homens.

O mais curioso é que apesar de ter sido a Bela, quem fez sangue pela sua honra, deixou de ter pretendentes. Somos uns cobardes, só assim se percebe que tenhamos medo da sua beleza selvagem. Ou da lâmina, como referiu Nicolau, com um sorriso brejeiro.»


A fotografia é de Maciek Lesniak.

sexta-feira, junho 05, 2015

As Noites Calmas das Cidades Menores


«Nas localidades pequenas, o dia a dia acaba mais cedo, para quem não gosta de viver pela noite dentro.

Há um café ou outro que ficam abertos até à meia-noite, quase sempre mal frequentados, por serem lugares de predilecção de quem gosta de beber mais que a conta e deixar que a sua voz ecoe pela rua fora.

Provavelmente também há bares e uma ou outra discoteca, inventados em lugares quase escondidos. Nunca percebi se a construção de discotecas em lugares isolados, se devia apenas ao som, para não se fazer má vizinhança, ou se havia algo mais. Devia haver, porque normalmente as discotecas construídas dentro das cidades – Lisboa é a excepção que confirma a regra – são um fiasco, a malta quer ir para fora, ver outras caras e fingir que o mundo afinal sempre mudou.»

A fotografia é de Andreas Feininger.

quinta-feira, junho 04, 2015

Chegar e Ficar a Sul


«A Alice foi a única pessoas que quis saber porque tinha vindo para o Alentejo, contrariando a corrente habitual, que leva quase toda a gente para a Capital e arredores.

Quando lhe disse que vim para o Alentejo porque li num livro que os desertos são bons para recomeçar, ela sorriu.

Não lhe expliquei o quanto precisava de uma outra vida, nem tão pouco que o espelho tinha sido bom conselheiro. Quando vi o meu reflexo, senti que com trinta e quatro anos, ainda estava a tempo de tudo. Esse momento fora decisivo para me decidir a escapar para o Sul, onde mantinha raízes, e mais importante, um porto de abrigo.»

A fotografia é de Anton Corjbin.

quarta-feira, junho 03, 2015

A Capa do Jornal


«Não me espantei por o cabo Colaço ter sido uma das primeiras visitas que apareceu na redacção, na manhã da saída do semanário. Depois de falar com o director, veio ter comigo.

Com cara de poucos amigos quis saber quais eram os objectivos daquela capa, acrescentando que se pretendia pôr toda a Vila em alvoroço, ainda por cima sem saber o que dizia, me iria dar mal.

Apenas lhe perguntei:
- E se eu estiver certo e o senhor errado?

O guarda coçou o queixo e abanou a cabeça de forma negativa, a dizer-me que estava enganado, acrescentando:
- Nós não nos baseamos em suposições. Só trabalhamos com provas.

Olhei-o nos olhos e disse:
- Lá chegaremos. Aqui no Sul se há coisa que não nos falta é paciência. Bem dito povo alentejano, que mesmo a passo de tartaruga, não fica à espera que as coisas aconteçam.

Antes de se despedir e sem perder o seu ar pouco amigável, deixou no ar, quase num tom de ameaça:
- Provavelmente irá ser chamado ao posto. Não gostamos de especulações jornalísticas e por isso queremos tirar toda esta história a limpo.

Limitei-me a dizer:
- Acho muito bem, senhor cabo. - Ao mesmo tempo que via o homem de barriga proeminente a afastar-se e a bater com a porta, à saída.»

A fotografia é de Vivian Maier.

terça-feira, junho 02, 2015

O Começo de Tudo


«Há muito que não ia ver o mar. Mas desta vez precisava mesmo de olhar as ondas, de procurar apoio no eco das suas palavras incertas.

A caminho da costa, estranhamente, pensei mais no que me acontecera e não tanto no Nicolau. Pensava sobretudo no legado que ele me deixara, acabar o que tinha começado, por muito que incomodasse certas pessoas. O mais importante era ser discreto, sem me afastar um milímetro da procura da verdade.

Sem tentar fazer qualquer paralelo, sabia que o incidente da qual fui vítima acabou por ter um culpado. Alguém que nunca vi nem sinto qualquer curiosidade em ver ou encontrar um dia destes. Muito menos em aceitar as suas desculpas. Aconteceu. Ponto final.» 

A fotografia é de Renate Siebenhaar.

segunda-feira, junho 01, 2015

Um Largo Cheio de Estórias


Este mês estou a pensar fazer algo diferente aqui no "Largo". Não vou montar barraquinhas e festejar os Santos Populares, até porque prefiro manter o sossego habitual.

Este meu "Largo" tem a vantagem de ficar num lugar onde não passam carros, onde é possível sentarmo-nos nos seus bancos e deixar escorregar algumas migalhas de pão no chão e recebermos a companhia dos pardais que se fartam de cantar nas árvores...

Mas vamos lá ao que interessa: ao longo do último ano fui escrevendo aquilo que poderia ser um romance (mas já são pelo menos meia dúzia, tal foi a divagação...), pelo que irei transcrever alguns pedaços de histórias, ilustrados com a beleza das fotografias a preto e branco.

Será este o Junho no "Largo da Memória"...

A fotografia é de Bill Perlmutter.