sexta-feira, maio 15, 2020

O "Salão de Espelhos"


Quando me olho ao espelho, lembro-me que há já algum tempo não tinha o cabelo tão grande. Já podia ter telefonado ao meu barbeiro, que entre as várias características, comuns aos especialistas de "corte e pente", tem uma mais singular: gosta de desenhar e às vezes faz umas coisas giras, e até  participa em exposições artísticas quando o convidam.

Há minutos passei os olhos por uma crónica do José Cardoso Pires, a acabei por lhe "roubar" o título (Salão de Espelhos), com a ideia de lhe roubar mais qualquer coisa...

Recordei-me que a barbearia estava longe de ser o meu local preferido na infância, graças ao Cardoso Pires: «Na minha infância a barbearia sempre foi uma cadeira de tortura e depois passou a ser uma cadeira de morte, porque me habituei a ver os gangsters dos filmes a serem varridos à metralhadora quando estavam sentados ao espelho com a cara cheia de sabão.»

Deve ter sido por isso que durante anos o meu "barbeiro" era a cabeleireira da minha mãe (a Graciela...). Só quando mudei de bairro é que aproveitei o facto do meu vizinho de lado ser barbeiro e ter um "mini-salão" para os amigos, que o visitavam aos sábados. Era o senhor Ramiro, excelente pessoa, cuja figura recordava o Eduardo De Filippo, um grande actor italiano...

Mas vou voltar ao grande escritor português que "remata a sua crónica" da melhor maneira: «Uma profissão que sabe muito das pessoas e do mundo. Isto faz-me lembrar a única barbearia aberta que descobri há anos num domingo de Sevilha. Porta estreita, duas cadeiras; um só barbeiro, velho e desiludido, por baixo dum canário de gaiola.

Quando me sentei vi escrito no espelho: "Diplomado. Reputación universal". E reparei que o homem, distante, alheio a tudo, silvava umas notas musicais dirigidas ao canário enquanto me barbeava. Notas soltas, segredadas. Uma certa cumplicidade de solitários.
Ainda hoje estou convencido que aquele canário cantava Rossini e que só barbeiro o sabia entender porque, como verdadeiro barbeiro, era diplomado e universal.»

O meu barbeiro também têm vários diplomas nas paredes do seu "Salão de Espelhos", orgulhoso da sua profissão e do seu saber. O Zé Manel, não só é diplomado, como também tem "reputación universal"...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

2 comentários:

  1. O José Cardoso Pires era um sábio. E é verdade que os cabeleireiros nos fizeram falta neste confinamento…
    Um bom fim de semana.
    Um abraço.

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