terça-feira, fevereiro 15, 2011

Partir...

«Ele sabia que já ninguém partia pelo mar e isso deixava-o triste.

Para ele não havia partidas nem despedidas sem mar, muito menos chegadas.

É uma banalidade partir para fora, empurrado para o interior de pássaros de ferro e depois desaparecer no meio do céu azul, com e sem nuvens.

Foi por isso que andou a cirandar rente ao cais e a perguntar onde se podia arranjar emprego como tripulante, de qualquer barca, um cargueiro, um graneleiro ou outra coisa qualquer, desde que estivesse distante das cidades ambulantes que atracavam em Lisboa, diariamente. Falaram-lhe de duas ou três empresas rente ao Cais Sodré.

Apontou os nomes.

Queria e precisava de partir. Estava farto de ser ninguém, de não ter um trabalho com um ordenado decente. Mas estava ainda mais cansado do ambiente pesado que o rodeava, empestado de lamuria, inveja,vaidade, incompetência e falsidade, que faziam do seu emprego um "teatro" muito mais trágico que cómico.»

Nota: Encontrei este texto num dos cadernos de capa preta, escrito há mais de vinte anos. Mas até podia ser de hoje, em que é cada vez mais urgente partir...

O óleo é de Cláudio Dantas.

10 comentários:

  1. Um texto excelente e actual. Também tenho saudades dos cais de partidas e chegadas.
    Um beijo, Luís.

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  2. eu adorei ler, luís. escrevias muitíssimo bem há vinte anos atrás. um beijinho grande, marinheiro*

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  3. eu sempre gostei de cais, de lugares onde se parte e chega por rio ou mar, Graça.

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  4. que exagero, Alice.

    sim, tenho alma de marinheiro...

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  5. Escrevias muitissimo bem, e continuas a fazê-lo... pena que o mercado editorial, como todos os mercados, aliás, não passe de um mercado mesmo...

    Beijinhos melancólicos... e olhos iluminados pelos teus textos.

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  6. pois, Lóri, coisas deste mundo, que nem sequer é bem redondo...

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  7. estava farto de ser ninguem...

    gostei do todo o texto e se tem vinte anos, é sinal que já escrevias muito bem nessa altura.

    ve se tens mais nesse caderno de capa preta.

    beij

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  8. tem mais de vinte anos, Piedade... (vinte e três).

    e tenho mais cadernos de capa preta (mais de uma dezena, alguns até tenho medo de os abrir...).

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  9. vou-lhe levar o texto e o óleo.

    [muito muito obrigada]

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