segunda-feira, março 29, 2010

O Trabalho na Fábrica

Como lhe iria explicar, que sentia saudades do trabalho da fábrica?

Sentia falta das palavras que trocávamos, das segundas feiras mágicas em que o futebol era rei, em que pertencer ao Sporting e ao Benfica (ser do Poarto era uma coisa periférica, regional), era delicioso termos algo a que nos agarrarmos quase até ao fim do dia, fintando o ar salazarento do encarregado, que ainda não se adaptara às liberdades de Abril e que queria colocar um "relógio de ponto" na casa de banho por causa das costureiras, que muita "água" vertiam. Ela dizia outra e outras coisas. Embora fosse um tipo ordinário, à distância de trinta anos acho-lhe alguma graça.
Sentia falta dos "cromos" de todas as idades, especialmente da carpintaria, a parte maior da fábrica, que tinham uma inveja do caraças, porque a secção dos estofes era a única que tinha as bem ditas mulheres. Até me arranjaram um namorico com a Teresa, porque normalmente ia ajudá-la no transporte de tecidos. Mas claro que nunca se passou nada, acho que éramos demasiado amigos e isso sempre afastou o pecado, digo eu, claro...
Ao olhar à minha volta, no interior daquele casarão de três pisos, com mais serradura que soalho, descubro muitas personagens capazes de alegrar alguns livros que ainda estarão por escrever. O curioso foi terem-me aparecido duas, que ficaram logo ali, paradas, o André "polidor" e o Serafim "escrivão". O André era das pessoas mais calmas daquele lugar, trabalhava de bata, uma bata castanha, cujos bolsos eram escolhidos para guardar coisas "impossíveis" dos outros. Quando alguém perdia alguma coisa, diziam que devia estar na "casaca" do André. Nunca se arreliava com estas brincadeiras, nem mesmo quando lhe colocaram um rato pequenino, ainda vivo. Limitou-se a pegar-lhe no rabo e a oferecer-lhe a liberdade, nos labirintos povoados de móveis.
O Serafim era a pessoa mais divertida da fábrica. Era um faz tudo, que fazia a ligação entre o escritório e o pessoal. Os seus óculos de lentes "garrafais" e o seu sorriso fácil, identificavam-no como o melhor contador de anedotas e de histórias das redondezas. Ficámos amigos logo no meu primeiro dia da fábrica. Ele percebeu que eu não estava à vontade e deu-me logo motivos para sorrir, quando me chamou sortudo, por ir trabalhar para a "gaiola das malucas"...
Afinal não era assim tão difícil de explicar, as saudades que eu tinha do meu primeiro emprego a sério...
Acho que já utilizei por aqui esta ilustração de Hart Benton, mas foi a que me pareceu mais adequada...

8 comentários:

  1. Das memórias que nos completam.

    ResponderEliminar
  2. Um belo olhar sobre o passado...e muito bem ilustrado!

    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Boas memórias...

    bjs. Luís*

    ResponderEliminar
  4. bem, afinal era até um felizardo.
    claro que há coisas que , até podem remeter-se para uma parte menos usada da nossa memória, mas elas voltam para nos dizer que o tempo tem sempre uma fita que se rebobina e nos diz alguma coisa.


    ____

    beijos Luís

    ResponderEliminar
  5. vai ser esticado e dará um conto para um livro qualquer, Rosa...

    ResponderEliminar
  6. sim, são quase sempre as boas que aparecem. M. Maria Maio. e ainda bem.

    ResponderEliminar
  7. tens toda a razão, Maré.

    o tempo brinca com a memória, surpreendendo-nos... o que não deixa de ser agradável.

    ResponderEliminar