sábado, outubro 20, 2012

A Merda do Outono


«Num só dia, hoje, comecei a ler Al Sur De Los Párpados, o terceiro romance que escreveu o Enrique Vila-Matas, terminei um conto com o qual andava engalfinhado há semanas, comprei uma garrafa de Jack Daniel's e ouvi a chuva metralhando o empedrado da praceta — a merda do Outono, enfim. Também me lembrei de dois amigos doentes, um dos quais já nada deve ser capaz de salvar (não existem milagres, não existem milagres, se existissem milagres ele não adoeceria e viveria para sempre). Vai muito provavelmente morrer sem que nos voltemos a ver nem a falar, deitado numa cama de hospital, sedado, quando devia estar a trabalhar nos seus poemas melancólicos, a rir, a contar longos episódios domésticos, a escrever crónicas sobre os desmandos do país (e logo agora, quando mais precisamos dele). Não nos veremos e não há nisso mal nenhum. Quando me lembro dele, sempre que me lembrar dele, terá os olhos franzidos num sorriso amável ou de troça, e estará ainda a desculpar-se por não me ter ainda mandado um texto qualquer que prometeu e até está na desktop do computador, para ele não se esquecer. Não faz mal. Não tenho pressa. Vou continuar à espera do texto, de que se ponha bom e possa voltar a falar ao telefone, para me perguntar pelo meu filho e me contar coisas de serralheiros e mulheres da limpeza, se li este livro ou aquele, e a dizer-me frases do Stendhal sem ser por nada.»

Este belo texto foi escrito e publicado por Manuel Jorge Marmelo, no seu blogue, "Teatro Anatómico". Foi através dele que percebi que Manuel António Pina estava muito doente. 

Aproveito esta oportunidade para homenagear o grande poeta do Norte, mas também o autor desta crónica tão expressiva, um dos jornalistas despedido pelo "Publico", no despedimento colectivo que não é mais que a morte anunciada de um dos melhores jornais portugueses. 

Como ele tem razão. O Outono tem a sua beleza, mas para alguns de nós, não deixa de ser uma merda, pelo que se perde...


O óleo é de Ian Ledward.

8 comentários:

  1. obrigada por trazeres para aqui o texto do Manuel Jorge Marmelo, e pelas tuas palavras a homenagear o Manuel António Pina.
    a morte é f..... abstenho-me de escrever a palavra completa.
    deixo um beijo

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  2. O Outono de (quase) tudo o que perdemos...
    :(

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  3. Que texto lindo! Poético, profundo, sentido! Alguém que sabia que MAP estava gravemente doente. Uma morte que nos apanhou mesmo de surpresa - uma merda mesmo! Nunca gostei do outono! Curiosamente, aos poucos vou-me adaptando à sua presença e à sua beleza. Será por estar a envelhecer?

    Preocupante...

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  4. Não gosto do Outono.Nunca gostei.
    É uma época triste em que já perdi pessoas a quem amava, além de já ter feito 4 cirurgias, e estado duas vezes em coma, nesta época.
    Daí que não me espante o titulo deste belo texto.
    Um abraço

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  5. se o Jorge não escrevesse o texto não tinha percebido o porquê da ausência do poeta Pina das páginas do "JN".

    (até cheguei a pensar que o tinham convidado a dedicar-se apenas à poesia...)

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  6. é, Maria.

    o Outono, especialmente o seu inicio, é uma merda.

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  7. o texto é muito bom-

    eu gosto de um dos lados do Outono, mas perdemos mais do que ganhamos, Graça, nesta estação de perdas...

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  8. triste mesmo, quase sempre de perdas, Elvira.

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