Mais do que o seu percurso entre a Meda e o Pinhão, a carreira era para nós a velha camioneta que vinha todos os dias pela EN 222 e nos ligava à Vila, ao Comboio e ao Mundo, pela linha do Douro.
A carreira da Meda ou a carreira da Viúva passava nos Pereiros todas as manhãs, pelas oito horas e trinta minutos, e regressava às quatro e meia da tarde, depois de subir penosamente, curva-contra-curva, Pinhão, Bateiras, Casais, Ervedoza, até ao planalto da Pesqueira, num esforço notável para a provecta idade dos veículos que a firma Viúva Carneiro & Filhos, Ld.ª escolhia para fazer este percurso diário e exigente.
À ida, chegava à Pesqueira um pouco depois das nove, para que as pessoas dos Pereiros, do Vilarouco, do Vidigal e mesmo de freguesias mais afastadas da EN 222, como Valongo, Trevões e Vázeas, pudessem estar na Vila à hora de abertura das repartições onde a burocracia as chamava, sempre com algum receio da sua parte e quase nunca com qualquer proveito.
À vinda, passava outra vez pela Pesqueira, um pouco depois das três horas e ali fazia uma curta espera. Mostrar-se na Avenida para ver passar a carreira constituía a actividade social mais importante da gente da Vila, podendo dizer- se que o trabalho da parte da tarde só se iniciava depois de a carreira ter passado, ou era interrompido durante esse período e não vestir a melhor roupa para solenizar esse momento desqualificaria qualquer cidadão.
Neste curto intervalo desfilavam pela Avenida funcionários, artistas, comerciantes, desocupados, donas de casa virtuosas e meninas casadoiras, bisbilhotando que pessoas tinham chegado e imaginando o destino da viagem das que seguiam, assim alimentando o seu imaginário de moradores desta pequena vila do interior, onde nada se passava desde os tempos do Senhor Marquês de Pombal e da Real Companhia Velha.
Alguns grupos exibiam distintivos profissionais por si criados, como os alfaiates que espetavam na lapela do seu casaco escuro uma agulha onde enrolavam um bom pedaço de linha branca com as duas pontas a esvoaçar e, se estou a ver, punham mesmo ao pescoço a fita métrica do ofício feita de linóleo de cores berrantes.
A carreira da Meda também servia de relógio, nesse tempo em que os relógios eram raros e não se usavam todos os dias. “Já passou a carreira?” equivalia a perguntar “que horas são ?” e responder“ passou mesmo agora” era o mesmo que dizer “são oito e meia” se era de manhã, ou “quase cinco horas” se era de tarde, e dizer “hoje nem me dei conta de ter passado a carreira”, equivalia a afirmar “andei tão absorvido que nem dei pelas horas terem passado”.
Em boa verdade, a maior parte das vezes nem se via passar a carreira, pois a estrada velha, assim chamávamos à estrada nacional lá em cima, por contraposição ao pequeno ramal finalmente aberto e a que chamávamos a estrada nova, a estrada velha, dizia, não se avistava de todo o povo e, por isso, se quiséssemos ser rigorosos, teríamos que dizer, ouvi passar a carreira, pois era o ruído do seu cansado motor a arrancar para a paragem seguinte, na Horta, que chegava cá em baixo e despertava os nossos sentidos.
A nós, os dos Pereiros, onde o tempo se calculava pelo Sol, sem grande rigor, a carreira da Meda iniciou-nos no dever de cumprir um horário, pois toda a gente aceitava a obrigação de estar a horas, pois “ a carreira não espera por nós, nós é que temos que esperar por ela” , como responderia qualquer pessoa que subisse mais cedo até à paragem, dois quilómetros mais acima, a quem observasse “ainda é cedo, tens muito tempo” , e assim se aprendia, com naturalidade e os meios ao dispor, o dever de pontualidade.
A carreira da Meda também cumpria com muito rigor o seu compromisso de pontualidade com os passageiros e raramente terá chegado à paragem dos Pereiros, depois da sua hora, a menos que fosse Inverno e a neve lhe tivesse pregado alguma partida, e não consta que alguma vez tenha perdido, no Pinhão, o combóio descendente, ou que tenha daí partido antes de ver instalados todos os passageiros do combóio ascendente que a procuravam e isto constituía, ao fim e ao cabo, a obrigação maior deste transporte colectivo de passageiros e bagagens empilhadas no tejadilho, quando acabou o compartimento “J”.
Pela carreira da Meda se emigrou para o Brasil, para a África, para a França e para a cidade grande, com o coração apertado pela saudade e pelo receio do desconhecido e pela mesma carreira alguns regressaram um dia, umas vezes com a felicidade estampada no rosto, outras vezes mal disfarçando nas suas rugas cavadas as desilusões de uma vida, pois a sorte, contrariamente ao Sol quando nasce, não é para todos.
Este texto tem a assinatura de Joaquim Nascimento, que volta ao "Largo da Memória".