Devo confessar que não conhecia o significado da palavra Adelo (indivíduo que vende objectos usados). Embora o senhor Neves possa não ser o último "vendedor" de usados de Lisboa, transcrevemos o texto da autoria de Joaquim Nascimento, que me chegou à mão por José do Carmo de Francisco, porque é uma homenagem a uma cidade que tinha como habitantes pessoas que conversavam... (a ilustração foi retirada do livro "Carta de Lisboa", da autoria de Eric Sarner e Miguelanxo Prado)
Só agora que as novas tecnologias me conferem a possibilidade de visualizar, simultaneamente, boa parte das gravuras que fui comprando ao longo dos anos, me dou conta que é meu dever prestar homenagem ao senhor Neves a quem comprei boa parte delas, entre dois dedos de conversa. Mais sobre a vida do que sobre as peças em exposição e, menos ainda sobre o seu preço.
Até porque entre nós se estabeleceu um pacto secreto: o senhor Neves não me pedia preços muito elevados pois, tendo descoberto o meu pudor para lhe oferecer menos, sabia que devia pedir um preço justo, à cabeça, ou muito perto dele, para não inviabilizar, logo ali, a transacção.
- Tenho pena, senhor Neves, mas não me convém !
Eu sei que este não é o método clássico de formação de preços, muito menos neste ramo de actividade, mas connosco sempre foi assim e, salvo raras excepções em que terei pago simultaneamente o custo, também justo, da aula - o senhor Neves era um bom mestre em gravura, livros e faiança portuguesa e era generoso a transmitir esses conhecimentos – os seus preços foram sempre honestos e quase sempre couberam no meu orçamento que, como bom psicólogo, o senhor Neves intuía com bastante rigor.
Nas poucas vezes que deixei de lhe comprar sempre me arrependi e, quase sempre, quando voltei – ainda as tem senhor Neves ? – as peças já tinham sido vendidas.
Ainda hoje guardo na memória algumas que, assim, deixei de ter.
Nunca disse ao senhor Neves e pouca vezes o terei confessado a alguém que o almoço sentado, substituído por uma sanduíche foi, muitas vezes, a fonte da minha poupança para sustentar a extravagância de coleccionador, donde terá resultado um lucro acrescido para a minha saúde, para a minha elegância e para o prazer de as possuir.
O senhor Neves, no seu adelo, tinha uma empregada com funções imprecisas, mas de simpatia a toda a prova, a Dona Maria para mim, a Maria para o senhor Neves, Dona Maria que, muitas vezes, esteve do meu lado, nesta questão de preços.
Uma das suas funções era fazer o almoço para os dois num espaço precário conquistado à tralha amontoada, outra era reservar, pela manhã, um espaço para estacionamento do velho FIAT 127 do senhor Neves, o mais perto possível do estabelecimento.
A origem das minhas gravuras foi um segredo que guardei usurariamente durante alguns anos, pois não podia correr o risco de contribuir para aumentar a sua procura, promovendo o aumento de preços e a rarefacção o mercado. Eu sei, eu sei que o livre comércio não é isto !
Trabalhei algum tempo fora de Lisboa e, por essa razão, as minhas visitas ao senhor Neves foram-se tornando cada vez mais raras, até que um dia dei pelo estabelecimento fechado e nem sequer me atrevi a perguntar aos vizinhos pelo senhor Neves, receando a resposta óbvia que a sua provecta idade prenunciava.
Prefiro pensar que o senhor Neves ainda lá está, ou vem a caminho no seu velho carro, e qualquer dia reabre o seu Adelo com stock renovado e vai reservar para mim as mais belas gravuras, ou os mais raros incunábulos. Se eu o merecer, ou tiver sorte, talvez até me venda a imagem do patrono do seu estabelecimento ou o vulto policromado da República que, embora em lugar de destaque, eram apenas figuras tutelares do estabelecimento, onde nunca estiveram à venda, por nenhum preço.
O senhor Neves foi o último adeleiro de Lisboa e o seu estabelecimento, esconso, bafiento e desordenado, rés-do-chão e cave, chamava-se, não sei porquê, "Adelo de São Joaquim".
Na rua de S. Bento, em Lisboa, creio existirem, ainda, uma ou duas lojas de Adelo.
ResponderEliminarSempre achei fascinante entrar naquelas lojas, onde está, espalhado e empilhado, parte do passado de tanta gente que um dia precisou de desfazer as suas casas.
É gratificante que haja, ainda, um sítio onde se encontre uma velha manteigueira, ou biscoiteira, igual á que ficou na nossa lembrança, de quando entrávamos em casa dos nossos avós...No fundo, é a ilusão de poder comprar uma memória.
Eu também acho que ainda existem casas destas em Lisboa, até mesmo no Bairro Alto.
ResponderEliminarMas devem ser uma raridade... e serão, autênticos museus vivos, Sininho...
Gostei da visita e das palavras.
ResponderEliminarVolta sempre Paula.