terça-feira, janeiro 23, 2007

A Carreira da Saudade


Mais do que o seu percurso entre a Meda e o Pinhão, a carreira era para nós a velha camioneta que vinha todos os dias pela EN 222 e nos ligava à Vila, ao Comboio e ao Mundo, pela linha do Douro.
A carreira da Meda ou a carreira da Viúva passava nos Pereiros todas as manhãs, pelas oito horas e trinta minutos, e regressava às quatro e meia da tarde, depois de subir penosamente, curva-contra-curva, Pinhão, Bateiras, Casais, Ervedoza, até ao planalto da Pesqueira, num esforço notável para a provecta idade dos veículos que a firma Viúva Carneiro & Filhos, Ld.ª escolhia para fazer este percurso diário e exigente.
À ida, chegava à Pesqueira um pouco depois das nove, para que as pessoas dos Pereiros, do Vilarouco, do Vidigal e mesmo de freguesias mais afastadas da EN 222, como Valongo, Trevões e Vázeas, pudessem estar na Vila à hora de abertura das repartições onde a burocracia as chamava, sempre com algum receio da sua parte e quase nunca com qualquer proveito.
À vinda, passava outra vez pela Pesqueira, um pouco depois das três horas e ali fazia uma curta espera. Mostrar-se na Avenida para ver passar a carreira constituía a actividade social mais importante da gente da Vila, podendo dizer- se que o trabalho da parte da tarde só se iniciava depois de a carreira ter passado, ou era interrompido durante esse período e não vestir a melhor roupa para solenizar esse momento desqualificaria qualquer cidadão.
Neste curto intervalo desfilavam pela Avenida funcionários, artistas, comerciantes, desocupados, donas de casa virtuosas e meninas casadoiras, bisbilhotando que pessoas tinham chegado e imaginando o destino da viagem das que seguiam, assim alimentando o seu imaginário de moradores desta pequena vila do interior, onde nada se passava desde os tempos do Senhor Marquês de Pombal e da Real Companhia Velha.
Alguns grupos exibiam distintivos profissionais por si criados, como os alfaiates que espetavam na lapela do seu casaco escuro uma agulha onde enrolavam um bom pedaço de linha branca com as duas pontas a esvoaçar e, se estou a ver, punham mesmo ao pescoço a fita métrica do ofício feita de linóleo de cores berrantes.
A carreira da Meda também servia de relógio, nesse tempo em que os relógios eram raros e não se usavam todos os dias. “Já passou a carreira?” equivalia a perguntar “que horas são ?” e responder“ passou mesmo agora” era o mesmo que dizer “são oito e meia” se era de manhã, ou “quase cinco horas” se era de tarde, e dizer “hoje nem me dei conta de ter passado a carreira”, equivalia a afirmar “andei tão absorvido que nem dei pelas horas terem passado”.
Em boa verdade, a maior parte das vezes nem se via passar a carreira, pois a estrada velha, assim chamávamos à estrada nacional lá em cima, por contraposição ao pequeno ramal finalmente aberto e a que chamávamos a estrada nova, a estrada velha, dizia, não se avistava de todo o povo e, por isso, se quiséssemos ser rigorosos, teríamos que dizer, ouvi passar a carreira, pois era o ruído do seu cansado motor a arrancar para a paragem seguinte, na Horta, que chegava cá em baixo e despertava os nossos sentidos.
A nós, os dos Pereiros, onde o tempo se calculava pelo Sol, sem grande rigor, a carreira da Meda iniciou-nos no dever de cumprir um horário, pois toda a gente aceitava a obrigação de estar a horas, pois “ a carreira não espera por nós, nós é que temos que esperar por ela” , como responderia qualquer pessoa que subisse mais cedo até à paragem, dois quilómetros mais acima, a quem observasse “ainda é cedo, tens muito tempo” , e assim se aprendia, com naturalidade e os meios ao dispor, o dever de pontualidade.
A carreira da Meda também cumpria com muito rigor o seu compromisso de pontualidade com os passageiros e raramente terá chegado à paragem dos Pereiros, depois da sua hora, a menos que fosse Inverno e a neve lhe tivesse pregado alguma partida, e não consta que alguma vez tenha perdido, no Pinhão, o combóio descendente, ou que tenha daí partido antes de ver instalados todos os passageiros do combóio ascendente que a procuravam e isto constituía, ao fim e ao cabo, a obrigação maior deste transporte colectivo de passageiros e bagagens empilhadas no tejadilho, quando acabou o compartimento “J”.
Pela carreira da Meda se emigrou para o Brasil, para a África, para a França e para a cidade grande, com o coração apertado pela saudade e pelo receio do desconhecido e pela mesma carreira alguns regressaram um dia, umas vezes com a felicidade estampada no rosto, outras vezes mal disfarçando nas suas rugas cavadas as desilusões de uma vida, pois a sorte, contrariamente ao Sol quando nasce, não é para todos.


Este texto tem a assinatura de Joaquim Nascimento, que volta ao "Largo da Memória".

11 comentários:

  1. até fiquei com saudades da carreira que me levava da aldeia para Águeda, no tempo da escolinha... onde encontrava os colegas de carteira, os amigos, os inimigos da altura, os supostos ou insuspeitos namorados...

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  2. Eu também Inominável, as carreiras foram uma festa, na nossa meninice...

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  3. Os Capristanos, primeiro, os Claras depois, e após Abril a Rodoviária Nacional... eram as carreiras para a Benedita e Santa Catarina, que paravam em Salir de Matos...

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  4. Olá M... vim cá dizer que o poema era mesmo... meu... ;)

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  5. Se houvesse alguma coisa como "perfeição" na Literatura, este texto estava lá perto.
    Este é um exemplo onde existe aquele ponto, quase sempre inatingível, onde se encontram simplicidade, informação e beleza.
    Parabéns Joaquim!
    Um abraço da tertuliana Fernanda

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  6. As carreiras levam e trazem... sempre, qualquer coisa, nem que sejam memórias (e porque não sonhos?...), Paula.

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  7. Espantoso este texto! E recordou-me momentos da minha adolescência, quando fazia verdadeiras corridas e uma vez quase me "estampava" contra a traseira de uma camioneta que estava no lugar errado, ou seja, tinha-se enganado num caminho secundário...quase não conseguindo controlar o meu cavalo....
    Deixo o link da foto que digitalizei... :-)))

    http://i3.photobucket.com/albums/y66/Marota/corrida.jpg


    Um abraço ;)

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  8. Digno Sr. Joaquim Nascimento

    Foi com muita e muita saudade que ao ler a sua mensagem voltei a ser criança, pois tenho a confessar-lhe que admirei mt o seu texto, sendo eu natural da Touça, tenho a dizer-lhe que foi sem tirar nem pôr tudo o que diz se passou comigo. Parti por volta dos anos 60 mais propriamente no ano de 1961 (tinha eu 14 anos) em direcção ao Pinhão na dita carreira da Mêda que passava na Touça por volta das 7h30 e apanhei comboio no Pinhão direcção ao Porto, com rumo a Oliveira de Azemeis onde ainda me encontro. Os anos foram passando e nas festas de Natal, Pascoa e festa da Touça u me servia novamente da dita Carreira, pois como diz e é verdade as carreiras como se chamava na altura aos ditos autocarros de hoje eram lentas e ruidosas, frias no Inverno e quente no Verão. Lá vinha a chevrolete LE-13-54 ou Bedford AL-13-34 c/ o capôt aberto parar arrefecer, parar em Ervedosa ou na Pesqueira para meter agua chegava ao alto da pesqueira com a ''lingua de fora''.
    Por falar em Ervedosa um dia lembra-me que o Sr. Vasco (cobrador) quando acabava de fazer a cobrança, tinha o custume de vir para a porta de tras e pôr-se nos degraus das escadas (de pé) encostado a porta. Ao dar uma curva em Ervedosa a porta abriu-se e ele caiu no chão ficando um pouco mal e o dinheiro todo espalhado na estrada. Só mais a frente a que o sr choufer ( Tonecas Martins) se deu conta da falta do Vasco.
    Tambem tenho uma história verdadeira para contar. Um dia a carreira da viuva que vinha de Penedono para Foz Côa avariou na Touça, o Sr José Mário Carneiro, foi á Touça com o mecanico deles ver se reparava a avaria mas como era demorada, lembrou-se que o padrinho dele o S.r Bernardo poderia dar-lhe mais uma ajuda, pedindo-lhe para ele preparar o tractor grande que tinha um atrelado, para o qual possuia licença de transportar pessoal para as vindimas com bancos laterais de madeira, assim se pediu assim se fez.. Lá vai o Sr. Jorge Domingos vestido com farda de choufer e o obrigatório boné mais o Franquelim cobrador de pé ao meio do atrelado, todos os passageiros aceitaram ir no tractor, só uma Sra professora que já estava na Touça na altura não aceitou dizendo que era ridiculo. Quando o tractor começou a andar o Franquelim como ia de pé desiquilibrou-se e caiu. Foi uma viagem memoravel. A rir até Foz Côa contaram as pessoas que seguiram no auto tractor que nunca mais se irão esquecer do sucedido. Tambem me lembra que a carreira que vinha do Pinhão chegava a Touça por volta das 5h30 da tarde e esperava pela que vinha de Foz Côa para Penedino e no cruzamento da Touça junto ao café do Xico (velhote) ficavam na estrada a par uma da outra com as frentes ao contrario. Os passageiros iao passando de uma para a outra conforme os destinos enquanto os cobradores, Vasco e Franquelim subiam pelas ditas escadas para mudar as encomendas para os destinos, o transito, o pouco que havia naquela altura chegava a esperar as meias horas para poderem passar.
    Já falei na farda mas quero aqui frisar mais um pouco este ponto, doia a quer doer mas era bonito ver o choufer e o cobrador com roupas iguais e respectivos bonés com o emblema das empresas e sempre muito bem limpos.
    Quero lembrar e prestar homenagem aos 4 senhores mais conhecidos por mim que passavam diariamente na Touça.
    Choufer- Toneca Martins (Falecido)
    Choufer- Leitão (Falecido)
    Cobrador- Vasco (Falecido)
    Cobrador- Franqulim (Não sei que é feito dele)
    As carreiras da VIUVA estavam sempre metidas nas nossas saidas ou chegadas com rumo a linha do Douro e Beira Alta. Todos eramos transportados quer na saída quer na volta com alegria ou tristeza.
    Nascia em Freixo ás 5h00 a carreira para Celorico, passava a Touça por volta das 5h30 na qual eu viagei alguns anos em direcção a Meda.
    Quero lembrar que a carreira da estação de Freixo quando chegava a Touça ás 3h30 trazia as malas do correio para diversas freguesias, toda a aldeia parava para ver se vinha correio para eles mas tudo isto acabou, todos perdemos até o proprio comercio local.
    O Sr. Nascimento falava nas escadas de trás das carreiras, pois era verdade, nós também enquanto crianças nos pendoravamos nelas. Mais tarde talvez por esse motivo começaram a ser de levantar e só os mais velhos a que chegavam a elas, mesmo assim quando havia uma oportunidadelá iamos penduradosalguns metros ou até quilómetros. Quando as carreiras atingiam mais velocidade era dificil saltarmos e iamos caindo mas como o transito naquela altura era pouco ou até nenhum não havia perigo de sermos atropelados por outros carros.
    Era uma alegria ver passar as carreiras de Viuva. Todos conheciamos os patrões e empregados. Lembra-me que naquele tempo na Touça só havia 2 carros, uma carrinha Mercedes 180 D e um Opel Olimpia descapotável que pertencia ao Sr. Bernardo e ao filhoZezinho e dois tractores deles. Hoje é bem diferente, na Touça já nem consigo contar os carros e as carreiras foram acabando.
    Ainda hoje quando vejo uma carreira da Viuva vibro



    José António Cardoso Fonseca
    Vila de Cucujães

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  9. Com quase uma ano de atraso, é meu prazer e meu dever agradecer a José António Cardoso Fonseca a sua memória da Carreira da Viúva.
    Gostava de lhe mandar uma história da camioneta da Touça que ia aos Pereiros buscar a azeitona, se quiser mandar-me o seu endereço e também recomendar-lhe dois livros de memórias dos nossos sítios "Uma Memória de Pereiros" e " A Casa e as Sombras" que deverá procurar na Editora Padrões Culturais, passe a publicidade e que certamente lhe vão dar muito orazer.
    Obrigado também a Luís Eme por me reabrir a porta deste seu magnífico blog
    Jnascimento

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  10. Boa noite
    A historia da camioneta da Touca que ia aos Pereiros buscar a azeitona era do Sr Bernardo Albuquerque e o condutor devia ser o Jorge Domingos ou Tinoco . A camioneta devia ser aquela que lhe chamavam o medo
    coamilenar@gmail.com
    Abraco
    Antonio Jose Carneiro

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