terça-feira, maio 11, 2010

Num Outro País Qualquer

Há muito tempo que ele tanto estranha a bondade como a maldade humana.

Foi por isso que escolheu viver num dos bairros mais feios e pobres da cidade.
Ali sabe que não é invejado nem bajulado por ninguém, nem tão pouco olhado de lado. É um indiferente, um quase invísivel, como todos os outros habitantes, pretos, brancos, castanhos ou cor de rosa.
Passa a vida a pintar. Tem compradores certos das suas aguarelas sobre Lisboa, de Alfama à Lapa. Também pinta interiores de casas, quando os bolsos estão mais vazios e o João Pintor precisa de reforços.
Achou estranho os aviões voarem tão baixo a meio da manhã. Não se assustou, como a senhora que ficou imóvel durante mais de um minuto. Além de suar, tinha ar de quem pensava que havia uma guerra qualquer a rebentar por aí. Não achou piada ao medo da mulher idosa nem ao barulho dos jactos, que conseguiram estremecer o cavalete e borrar a aguarela que estava a pintar.
Só à hora do almoço, quando passou pelo café, descobriu que o papa andava por aí, a fazer milagres.
O café estava mais cheio que o costume, para um dia da semana. Foi então que ouviu dizer que era feriado em Lisboa, graças ao tal rei dos católicos, que aparecia na televisão com o presidente.
Numa outra mesa, mais dada aos futebóis, preferiam o futebol à missa. Colocavam o Queirós no assador, enquanto faziam futurologia escura sobre o campeonato do mundo. Não ganhavam um jogo. Queriam um tal Quim, um João Moutinho, um Ruben qualquer coisa e um Makukula na selecção e ainda um Scolari. Rendeu-se mais uma vez à sua ignorância, não fazia ideia que havia portugueses com estes dois últimos nomes...
Sorriu de felicidade por não ver televisão, não ler jornais nem ouvir telefonia. A sua companhia continuava a ser o velho gira-discos e a música dos anos sessenta e setenta.
Bebeu o café e lá foi, para a sua casita, num outro país qualquer...
O óleo é de Francis Picabia.

11 comentários:

  1. não posso negar que a presença do papa e tudo quanto se tem passado desde a sua chegada me emociona, o futebol une massas, também, mas o espiritual ganha outra dimensão nestes dias em que se celebra a fé. um beijinho grande, luís.

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  2. Essas são as figuras que passam despercebidas, um mundo desconhecido dentro de outro mundo distraído com a rotina do dia a dia, quebrada pelos futebóis (fiquei tão contente com a vitória do Benfica! : ) ) e pela visita papal. Acredito que a maioria das pessoas necessita deste empurrãozinho espiritual e as palavras de paz e de harmonia que o Papa poderá proferir ou já proferiu. Sem só de pão vive o Homem e a Mulher, não é?

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  3. E fez ele muito bem não "ligar" a essas minudencias. Também deve ser pessoa que não exige muito da vida, a não ser o seu cafézinho e as músicas dos anos sessenta.

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  4. Um bom retrato do país...
    Gostei do João pintor.
    Um abraço, Luís.

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  5. passo um pouco ao lado. aliás, Alice, penso que os grandes ajuntamentos de pessoas, tiram-nos a lucidez...

    pensei em escrever um "post" sobre um amigo meu que me disse meio a brincar, meio a sério, que tinha medo de ir a fátima, porque com aquela envolvência, ainda começava a acreditar no "milagre"...

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  6. também acredito, Catarina.

    de certeza que há um ambiente especial em Fátima, porque as multidões têm o poder de nos unir a qualquer coisa, boa ou má...

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  7. é uma caricatura, Carlos.

    mas há cada vez mais gente que vive à margem desta sociedade, não acreditando nos três poderes, que podem ou não, fazer de nós um país mais justo e democrático.

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  8. de um outro país, mais marginal, que evita a todo o custo alimentar os sócrates, Graça...

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  9. pois, eu tenho uma certa inveja deste João pintor.

    não por ser "estrangeiro" no seu próprio país, mas conseguir abstrair-se desta semana é, ´deve ter sido, um repouso de luxo.
    mas são os tais perigos de que te falei antes. estamos a correr para eles a passo de gigante.

    ____

    um grande beijo

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  10. sim, mas é o que nos apetece fazer, distanciarmo-nos desta gente "doente", que nos vai "adoecendo", Maré.

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