sábado, março 17, 2007

A Minha Escola


A minha escola foi a escola da D. Guilhermina, embora tivesse tido outra professora na primeira classe, a D. Deolinda, de quem recordo , para além da dificuldade das primeiras letras, o ademane de sacudir a sua longa cabeleira, num gesto vedado às mulheres da minha terra que habitualmente tapavam a cabeça com um lenço.
A minha escola funcionava todos os dias, de manhã e de tarde, de segunda a domingo, o primeiro que chegava ia pedir a chave à Senhora, e lá dentro tinha o som de muitas vozes a entoar a tabuada, três vezes um três, três vezes dois seis..., os rios e os seus afluentes, Sabor, Tua, Corgo Tâmega e Sousa... ou as linhas do caminho de ferro, com as suas estações e apeadeiros, pois nesse tempo saber era decorar e a minha escola não ia ficar atrás de qualquer outra.
Nos intervalos, principalmente ao meio-dia, ouvia-se a algazarra das nossas brincadeiras na rua em frente, os esconderilhos, o arco, o pião, o fito, a macaca, a cabra-cega, a bola de trapos pois o recreio da minha escola era toda a aldeia e brincar um acto da mais pura imaginação.
Tinha todas as classes na mesma sala, a minha escola, com a vantagem de ser para ambos os sexos, contrariando a política do “estado novo”, circunstância que me permite recordar, com especial ternura, as raparigas do meu tempo, a Leonor, a Teresa, a Almerinda, a Piedade, a Isabel, a Virgínia, a Adelaide, a Deolinda e outras cujo nome se esfumou na minha memória, embora guarde de cada uma o sorriso breve do seu rosto.
E guardo o cheiro dos livros, só agora me dando conta que não eram os livros, mas o Livro, o Livro da Primeira Classe, o Livro da Segunda Classe, o Livro de Leitura da Terceira Classe.
Há uns anos consegui comprá-los num alfarrabista e, imediatamente, reconheci todas as suas figuras e voltei a saber de cor todas as lições, como se fora ontem e eu me estivesse a preparar para ser chamado dali a pouco. Mas o cheiro a tinta fresca tinha-se perdido definitivamente!
Apesar da sua elevada frequência, a minha escola era um posto escolar e as professoras regentes, eufemismo para lhes pagarem menos pela transmissão do mais básico dos saberes, ler, escrever e contar, primeira, segunda, terceira classe, que a quarta classe, nos Pereiros, era quase curso superior .
Aqui fica, como se fosse uma redacção, esta memória breve da minha escola. Dedico-a à D. Guilhermina, a quem quero expressar o meu reconhecimento por me ter ensinado a escrevê-la. Acredito que, se a lesse com os seus óculos de lentes grossas, iria dar-me uma boa classificação, principalmente depois de eu a passar a limpo, numa folha de papel Almaço, com a minha caneta de aparo de molhar e a caligrafia certa, elegante, desenhada como a Senhora me ensinou.

Mais um texto de Joaquim Nascimento. Infelizmente não consegui arranjar uma capa dos livros da primária de que o Joaquim fala (nem mesmo no "google"...), pelo que escolhi a bonita escola primária da Foz do Arelho, do Grandela, um bom exemplo arquitectónico das escolas primárias da Primeira República.

14 comentários:

  1. Luís

    Tenho os livros da 1ª, 2ª e 3ª classes. Posso digitalizar as capas e enviar-te. Se quiseres. Só não sei para onde...

    Bom domingo

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  2. jcfrancisco

    Amanhã à noite (tarde, na noite) terás por aí as capas dos livros.

    Um abraço, da terra das túlipas

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  3. Ainda bem que a foto agradou...

    Já fiz a alteração devida, Zé do Carmo.

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  4. Agradeço a tua atenção Maria, apesar da distância...

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  5. Um belo texto nostálgico.
    Essa foto é um verdadeiro encanto.
    E é uma sorte que a escola esteja tão bem conservada.
    "Sempre por bom caminho"...

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  6. O texto é bonito e a foto mostra um belo modelo arquitectónico das escolas primárias.

    Penso que este modelo é exclusivo das escolas mandadas fazer pelo Grandela (esse mesmo, o dos armazéns...), que foi um cidadão benemérito que chegou a ter uma palacete na Foz do Arelho (onde hoje é o Inatel) e promoveu uma campanha de alfabetização, com a construção de várias escolas. Esta começou a ser construída em 1909.

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  7. Meu Caro Luis eme
    Ao lado do palacete Grandela, na Foz do Arelho, era a colónia de férias dos seus trabalhadores e esta escola é igual às do Bairro Grandela, que dão para a estrada de Benfica, em Lisboa, onde esteve, sem grande visibilidade, o Museu da República e da Resistência. Infelizmente a minha escola não era destas, nem das do estado novo, pois era uma casa quase vulgar de uma aldeia do Alto Douro. Já não funciona, a minha escola, já pouco funciona a minha aldeia.
    Obrigado
    Joaquim

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  8. É um mau sinal dos tempos... este vazio que enche as nossas aldeias e coloca as escolas, quase sem alunos, em leilão, Joaquim...

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  9. Não foi só a Dona Guilhermina que ensinou ao Joaquim, Paula...

    De certeza que ele era um aluno atento, pronto a gravar "de memória" todos estes episódios...

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  10. Isso mesmo, José do Carmo Francisco.
    E a Estrela Radiante que, felizmente, nem o incêndio, nem a recuperação do Chiado (devia dizer do Grandela) apagou.
    Joaquim Nascimento

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  11. Sim, realmente um excelente texto. É engraçado como a nossa memória grava pequenos detalhes, que na altura nos passaram despercebidos, mas que o tempo nos mostra a sua verdadeira razão de ser. Detalhes que hoje, ao olharmos para trás, são parte integrante de um lindo quadro que sem eles estaria incompleto.
    Abraço

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Boa noite a todos!
    A antiga escola dos Pereiros:
    http://img2.imageshack.us/img2/8841/img4137b.jpg

    Philippe Fidalgo Ribeiro

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