sexta-feira, fevereiro 03, 2017

«Aceito sem qualquer problema, que sou um tipo estranho»

A discussão a meio da rampa colocou gente parada nos passeios, do começo ao fim da rua com o nome de Emília Pomar.

Fiquei com a sensação de que fui o único a passar sem parar, incomodado com o tom de voz da mulher que insultada um homem, que mesmo com um braço inutilizado, recebia todo o género de mimos (dos que fui ouvindo enquanto descia, calão era o mais suave). O homem tentava se defender com o seu defeito, mas a mulher não tinha lavado a boca e estava imparável. Eu sei que estava protegida pelo rapaz negro que a agarrava. Normalmente este agarrar ainda agita mais as discussões...

Já no fim da rua dou de caras com uma amiga, que tinha sido desperta pelas vozes esganiçadas que coloriam as redondezas, no meio de um dia cinzento, também ela parada a ver o "filme".

Perguntou-me o que se passava, abanei os ombros, e disse: «é uma discussão entre um homem e uma mulher, que provavelmente já gostaram um do outro.»

Ela sorriu, sem perceber que eu tinha inventado aquilo naquele momento.

E depois, como me viu continuar, perguntou-me se não estava interessado no epílogo. Devolvi-lhe um sorriso com um abanar de cabeça negativo. Acabou por vir atrás de mim, para me oferecer alguns mimos.

Limitei-me a dizer-lhe: «aceito sem qualquer problema, que sou um tipo estranho.»

Com ar de vencida, apertou-me a mão.

(Fotografia de autor desconhecido)

6 comentários:

  1. Luís, há uma curiosidade inusitada, acho, pela vida privada alheia, o que às vezes também se nota por aqui, pelo virtual, reflectida na curiosidade de se querer saber se o que escrevemos na primeira pessoa corresponde ao real.

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    1. Acho que agora ainda há mais porque se tornou quase uma "industria", Isabel.

      Há revistas e programas de televisão que se alimentam disso. Sem falar das redes sociais...

      Acho que tenho uma curiosidade diferente sobre as pessoas, prefiro olhá-las e imaginar como são, sem que precise que mostrem o pior ou o melhor delas...

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  2. Que cena estranha de estranha gente, Luís...

    Uma mulher branca(?) agarrada por um homem de cor, insultava um outro homem que tinha um defeito num braço, passa um transeunte, encolhe os ombros, segue o seu caminho e, quando interpelado, por alguém que já conhecia, atira ao vento uma sugestão envolvendo uma história d'amor, aceita mimos sem problema algum e a mulher sentindo~se vencida aperta-lhe a mão? Então??

    É tudo tão estranho que as pessoas sentadas, num banco corrido, não desviavam os olhos da situação. Houve até um que, cofiando a barba hirsuta, dava ares de ser um investigador criminal à espera de entrar em acção.

    ( como também sou estranha, um bicho tão raro, nada disto me espanta. )

    Boa tarde, Luís.
    Bela crónica, a sua! :)

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    1. Estranha mas aconteceu, Janita.

      A "vitima" é mais novo que eu e tem um braço paralizado (até mete a mão no bolso das calças para não o "estorvar".

      Não percebi nada da discussão. E provavelmente ninguém percebeu. Mas os insultos de rua são sempre um chamariz...

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    2. A ser verdade, ainda se torna mais estranho, Luís.

      Vá que a mulher se lembrava de começar a agredir o homem que, por certo, não retribuiria as agressões. Quem defenderia a 'vítima'-como o apelida o Luís- se todos passam e 'olham para o lado' ou se juntam por curiosidade mórbida e quando a coisa aquece viram as costas?

      Será esse o grande problema do: salve-se quem puder?...

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    3. Eles não estavam a um metro de distância, mas aí uns cinco, ou seja, uma distância segura, para não haver contacto físico, Janita.

      Foi uma guerra verbal. Continuo a pensar que a mulher gritava mais alto e fazia gestos, porque estava a ser segura pelo rapaz negro...

      As pessoas mostravam estar sobretudo "deliciadas" com o palavreado. E por isso não arredavam pé.

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