terça-feira, agosto 14, 2012

O Quarto de Reserva


Todo aquele barulho que lhe chegava pela janela, fazia-o perceber que aquele lugar perdera uma das suas melhores qualidades, a discrição. Sorriu ao ouvir os palavrões que lhe chegavam do pátio interior, ao mesmo tempo que se apercebia não era muito difícil saltar da janela do quarto para um terraço no piso inferior. 

Talvez fosse isso que fazia daquele quarto um lugar especial, especialmente durante a Ditadura Salazarista. Embora também escondesse gente que estava apenas de passagem pelo nosso país, enquanto os alemães fingiam purificar a sua raça e destruíam a Europa. 

Não estava ali para dormir, mas sim para escrever. Contar a história daquele quarto que escondeu, ainda que por apenas uma ou duas noites, gente da oposição, que precisava de um abrigo, para fugir aos agentes e inspectores da PIDE, espalhados pela Capital, que adoravam coleccionar "comunistas". 

Disseram-lhe que muito pouca gente conheceu aquele lugar, e quem o conhecia, só o utilizava em último caso. Mesmo assim teve durante, anos e anos, pelo menos um cliente semanal.

A grande particularidade daquele quarto, era não "existir". Quando se abria a porta, apenas se via um armário, que  guardava lençóis, fronhas e toalhas. 

Hoje continua sem receber clientes. Embora tenha perdido o secretismo, mantém o seu mobiliário tradicional, como se fosse um "museu". Para chegar à pequena divisão de dormir já não é preciso retirar alguma roupa e passar quase de cócoras pela pequena porta, quase impossível de detectar, embora parte do armário continue lá, encostado à parede, a fazer história. 

Ao não existir, não tinha preço. Ou seja, quem ali dormia, não pagava nada pela noite de descanso. E ainda podia mudar de roupa, pois existia uma arca com calças, casacos e camisas de vários tamanhos. E debaixo da cama  era possível encontrar meia-dúzia de sapatos Em frente da cama havia ainda um cabide espelho, com quatro chapéus diferentes pendurados, que também faziam parte das mudanças de cenário, muitas vezes obrigatórias.

A transformação do quarto começou por ser uma pequena vingança de um pai, inconsolável, depois de ver o filho preso após o 18 de Janeiro de 1934, sem ter feito nada de ilícito. Depois passou a ser uma questão de honra, uma forma de viver solidário com todos aqueles que lutavam pela Liberdade.

O óleo é de Jeremy Plunkett.

4 comentários:

  1. Liliana Pires19/08/12, 16:24

    Esta história fez-me lembrar a casa dos meus avós, que tinha sempre um quarto preparado para acolher camaradas na clandestinidade.
    Lembro-me que não se falava disso, nem se faziam perguntas. Nem mesmo hoje. Quando for visitar a avó vou falar-lhe disso.

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  2. Graças áqueles que tinham quartos assim é que muita gente conseguiu salvar-se da prisão.
    um ab raço

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  3. pois foi, Elvira.

    tanta gente generosa que escondia o medo.

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