quarta-feira, julho 06, 2016

Sem um País, Sem uma Cidade...

Podes vir de um outro continente e nunca te habituares a ser europeu. Ou pior ainda, nunca quereres ser isso, mesmo que te deixes enganar pelas vantagens que o passaporte trás.  Até porque Paris Londres ou Berlim, ficam quase ali, depois do virar da esquina...

Quando lhe falei destas portas abertas, desculpou-se com a nossa humanidade, de todos nascermos interesseiros, mesmo que seja por uma mera questão de sobrevivência. As contradições ficam num outro departamento, explicou-me ela. Distantes do leite materno do biberão ou de uma simples sopa (sim dessa para pobres...).

Fomos andando e ela confessou ser alheia às bandeiras e os cachecóis que as pessoas usam, muito menos percebe toda a exaltação provocada pelo futebol. Talvez por nunca ter conseguido compreender a graça de ficar a ver vinte e dois homens a correrem atrás de uma bola, capazes de empurrarem e de se pontapearem para a conseguirem meter dentro das redes. Talvez porque há coisas que não se explicam, sentem-se, pensei eu, sem tentar sequer fazer desenhos...

Mesmo dentro da Cidade que escolheu para viver é sempre estrangeira,  não consegue sentir nada como seu, nem mesmo o pequeno apartamento onde vive há mais de meia-dúzia de anos. Não culpa ninguém, sabe que é um problema apenas dela. 

O mais curioso é afirmar conhecer a única solução para os seus problemas: voltar de onde teve de fugir e para onde continuam a ir todos os sonhos...

(Óleo de Per Krohg)

5 comentários:

  1. Luís, o penúltimo parágrafo podia ser para mim. Tal e qual isto.
    E agora só ecoa aqui na minha cabeça "Eu sei, mas não devia", da Marina Calasanti:

    Eu sei, mas não devia

    Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
    A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
    e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

    E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
    E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
    E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
    E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

    A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
    A tomar café correndo porque está atrasado.
    A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
    A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
    A sair do trabalho porque já é noite.
    A cochilar no ônibus porque está cansado.
    A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

    A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
    E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
    E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
    aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

    A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
    A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
    A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
    A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
    A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

    E a ganhar menos do que precisa.
    E a fazer filas para pagar.
    E a pagar mais do que as coisas valem.
    E a saber que cada vez pagará mais.
    E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

    A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
    A abrir as revistas e a ver anúncios.
    A ligar a televisão e a ver comerciais.
    A ir ao cinema e engolir publicidade.
    A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
    A gente se acostuma à poluição.

    As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
    A luz artificial de ligeiro tremor.
    Ao choque que os olhos levam na luz natural.
    Às bactérias da água potável.
    A contaminação da água do mar.
    A lenta morte dos rios.

    Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
    a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
    A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

    Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
    um ressentimento ali, uma revolta acolá.
    Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
    Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

    Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
    E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
    e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

    A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
    Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
    da faca e da baioneta, para poupar o peito.
    A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
    de tanto acostumar, se perde de si mesma.
    __________________

    Há sempre algo de muito perturbador, cansaço imenso até, nesta questão do desenraizamento - conheço o das cidades e das casas - porque está sempre relacionado com uma anormalidade má.
    Aquele poema tem que ver com a sensação de derrota que sente quem vive nessas circunstâncias, se não se deveria fazer mais.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, a gente finge que se acostuma, Isabel. :)

      Eliminar
    2. E gosto quando me ofereces poemas.

      Eliminar
  2. Será que pertencemos realmente a algum lugar físico? Ou não passará de uma idealização?

    (adoro a tua escrita)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro que pertencemos, Carla.

      Há lugares onde nos sentimos bem, bem...

      (ainda bem...)

      Eliminar