domingo, maio 20, 2007

Tropa: Memória e Fábula


Este fim de semana vai realizar-se o almoço anual da nossa tropa, ao longo de todo o dia, como se o estômago fosse o mesmo de então e, entretanto, não tivéssemos mudado de dentição.
- Lembras-te, pá ? - Claro que me lembro, então eu podia lá esquecer-me !
E ainda que as memórias já não confiram, é preciso entrar no jogo e dizer que sim, mesmo sabendo que muita coisa foi sendo ajeitada ao longo da vida, para melhorar a nota, para retocar a foto, para espantar o medo.
Só valem as memórias boas, é a primeira regra deste jogo; a segunda é que ninguém se “chiba” à frente da família e vamos pedindo fôlego para jogar o dia inteiro, com um empate no final. A família não estava lá e às más memórias sempre podemos dizer:
- Olha que não, camarada, não foi bem assim e mostraremos um ângulo mais favorável.
Fizemos a tropa em Moçambique, entre 1963 e 1966, uma tropa de paz e de guerra, de riso e choro, de bebedeira e lucidez, de coragem e medo, de vida e morte, e é das suas memórias que falaremos ao longo do dia, com a algazarra de putos felizes na parada do quartel. Se exagerarmos aqui ou ali, não será por mal, nem para prejudicar ninguém, mas quem ouvir de fora há-de ter a generosidade de dar-nos uma razoável taxa de desconto.
- Estás na mesma, pá, parece que não passou um ano por ti ! O “tanas” é que não passou, se me permitem esta moderada linguagem de caserna, claro que passaram, mais por uns do que por outros, que a vida não trata todos da mesma maneira. Então onde ficou o meu cabelo preto e farto ? Onde está a minha resistência antiga ? Onde deixei a minha cintura fina, os meus sessenta e sete quilos de peso, a minha pele lisa, os meus olhos de águia? Onde guardei os meu sonhos desse tempo ?
Mas é bom acreditar e, a esta distância, quem não namorou a rapariga mais linda da vila, quem não os teve no sítio naquela operação difícil, quem não esteve quase a “lerpar” e deu a volta por cima, quem não era o mais “vivaço”, o mais desenrascado, o mais corajoso, o galã da companhia ?
- Claro que eras tu, camarada, mas eu também não te ficava atrás!
Este fim de semana vai realizar-se o almoço anual da nossa tropa e, vencida a inibição inicial de quem passou um ano ou mais sem se ver, voltaremos a ter vinte e dois anos e uma vida inteira à nossa frente.
Se tivermos sorte e o vinho for bom, até podemos terminar o dia em Inhaminga, com uma cerveja no Simões, ou em Vila Cabral, com um churrasco no Planalto e, num lado ou noutro, com uma moça muito bela a nosso lado.

Mais um texto de Joaquim Nascimento...

5 comentários:

  1. É interessante como a nossa memória é selectiva.
    De certos factos, guardamos apenas o lado agradável.
    Relativamente a outros, a memória torna-se de chumbo, esquecem-se as horas agradáveis e só são lembrados os pedaços piores.
    O cérebro humano é um puzzle bastante complicado...

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  2. Também não percebo muito bem porque há tanto medo de falar da guerra, de exorcitar os fantasmas que ainda andam por ai.
    Restam estes convívios, para recordar as coisas boas de África.

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  3. É também lembrar o tempo em que todos eram novos e o tempo em que novos, a vida suspensa foi vivida longe. É olhando uns nos outros que percebem que a guerra, moendo muitos, não os matou. E outra vida foi retomada, mantendo sempre agora em suspenso, e voltando uma vez por ano à outra que poderia ter sido.

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  4. Não serão também um acto de coragem, estes encontros? Porque de certeza que não se reflete no olhar dos companheiros de "sortes", apenas os momentos de folia nas cidades... há também o mato, os tiros e o sangue...

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  5. Era mesmo assim. A foto é dos anos sessenta, os meus anos, mas como a zona é perigosa eu mandaria apear e fazer aquele pedaço a pé com um olho na estrada e outro no capim.
    Grato, meu caro Luís Milheiro !
    Joaquim

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