Alguns meses depois dele partir, receberam um telefonema da América estranhíssimo. No início pensaram que era engano ou uma brincadeira de mau gosto, mas pelos detalhes que lhes foram oferecidos, perceberam que ele tinha outra família nos Estados Unidos da América (uma mulher e dois filhos). Os meio-irmãos americanos não só entraram em contacto com eles como quiseram conhecer, a "outra família", do pai.
E alguns meses depois viajaram até ao nosso país. Não foi um encontro feliz nem infeliz. Foi sobretudo estranho, para todos. Deve ter sido por isso que nunca retribuíram a visita, não sentiram qualquer curiosidade em conhecer a América que foi do pai.
Se a história dos "marinheiros que tinham uma mulher em cada porto" era exagerada, também não foi difícil concluir que havia alguma verdade dentro dela... Talvez o pai nem fosse caso único.
"Embarcadiço", passou uma boa parte da sua vida no meio do Atlântico, ao serviço de uma companhia de navegação americana, e nos intervalos das viagens, tinha "duas casas e duas famílias", em dois continentes. Durante mais de vinte anos conseguiu dividir-se entre Nova Jersey e Malveira, sem levantar grandes questões, embora nunca passasse de um marido e de um pai ausente...
Confidenciou-me que os presentes bonitos que recebia, e que eram novidade, nunca foram suficientes para apagar a sensação de ter um pai, quase sempre, em viagem, à volta do mundo. Na infância e adolescência inventou muitas histórias e transformou o pai num "herói", quase ao nível dos nossos descobridores. Depois cresceu e a vida tratou de lhe devolver um pai diferente, distante (talvez saudoso da "outra família", com quem foi mais feliz...) e pouco heroico.
Por mais que tente, não consegue perdoar a "cobardia" ao pai. Não é tanto o facto de ele ter "duas famílias", mas sim por ter conseguido levar este seu segredo para a "cova". Fez alguns interrogatórios no seio da família e percebeu que nem mesmo os seus irmãos sabiam desta "duplicidade" familiar.
Depois de se reformar o pai passou os seus últimos dez anos de vida no nosso país (só viajou uma vez para a América, para festejar o centenário da empresa onde trabalhara...). Nem este afastamento da sua família americana fez com que desabafasse com alguém sobre este dilema, que pensamos muitas vezes, que só se passa nos filmes e nas telenovelas...
Este é apenas mais um episódio que nos diz que a realidade nunca é muito diferente da ficção...
(Fotografia de Luís Eme - Tejo)
Bom, esse ainda ia e vinha. O meu bisavô foi para o Brasil prometeu que assim que tivesse a vida organizada, mandava chamar a mulher e os três filhos. E eles só vieram a saber dele depois que morreu, quando os filhos que teve lá quiseram vir conhecer a terra do pai e os seus avós. Calcule o choque que foi, no inicio do século XX com a maneira de viver que existia naquela época.
ResponderEliminarAbraço, saúde e bom domingo
Felizmente acabaram-se com muitas coisas aberrantes, Elvira.
EliminarEmbora ainda existam diferenças e desigualdades, o mundo está mais humanizado, respeitam-se mais as pessoas (todas)...
A ficção vai buscar à realidade conteúdos que achamos estranhíssimos.
ResponderEliminarVidas duplas é o que mais há!
Abraço
Sim, é verdade, ainda há muita coisa estranha escondida, Rosa, muita duplicidade.
EliminarInfelizmente os grandes abusos humanos ainda se passam no seio das famílias...