Quando me surge uma ideia maluca, daquelas que podem resultar no mundo estranho da literatura, escondo-a quase sempre dos blogues.
Mas hoje, ao passar os olhos por um dos cadernos onde guardo algumas personagens, houve uma que quis mesmo sair e ir dar uma volta até pelo Largo. Fiz-lhe a vontade...
«Aquele homem, que não conhecia de sitio nenhum, disse-me em jeito de segredo, que desconfiava que Deus era mesmo capaz de existir.
E começou a contar-me a sua história:
- Eu estava desempregado e acabei por ter a ideia luminosa de me fazer passar por coxo no metro de Lisboa. Coloquei uma palmilha desconfortável num dos sapatos, muni-me de um par de canadianas e aí andei eu, sempre com a mesma lengalenga: a pedir qualquer coisa para comer.
Sorriu antes de continuar:
- Às vezes davam-me os lanches, que aceitava muito agradecido, para não estragar o número com a soberba. Só não sabia o que vinha a seguir...
Coçou a cabeça e olhou para o chão antes de continuar:
- Passadas duas semanas, ao tirar a palminha do sapato e andar por ai, senti que continuava a coxear. Pensei que passava mas não passou. E nunca mais parei de coxear, mesmo sem canadianas. Já tinha ouvido falar que Deus está mais atento do que parece à nossa vida, e que castiga quem se porta mal, etc. Mas porra, eu só fiz isto por precisar mesmo de dinheiro para sobreviver. Nem sequer roubei ninguém. E só me dava esmola quem queria. Sabe, se pudesse gostava de ter uma conversa com esse tal Deus, que nem sequer sei se existe.
Eu cada vez menos dado a religiosidades, ofereci-lhe um cigarro e paguei os nossos dois cafés, mesmo sem ser parente de qualquer deus.»
(Fotografia de Roger Schall)