segunda-feira, fevereiro 29, 2016

«Amanhã vou a Lisboa»


Espreitei à janela e disse para os meus botões: «Amanhã vou a Lisboa.»

Nem sequer sei se vai estar bom ou mau tempo, mas como tenho duas ou três coisas para fazer na Capital, vou mesmo até ao outro lado do Rio.

Há umas três semanas que não visito a Cidade Branca, algo raro. É por isso que quero tanto ir à Lisboa. 

As únicas certezas que tenho é que esta ausência não se deva à distância, muito menos ao receio da travessia de apenas dez minutos, até porque a viagem dentro das barcas laranjas é sempre deliciosa...

(Fotografia de Luís Eme)

domingo, fevereiro 28, 2016

Reflexos Urbanos...


Gosto de tirar fotografias a "montras-espelho" porque acabo sempre por ser surpreendido por qualquer pormenor, daqueles que parecem esconder-se do nosso olhar. Como devem calcular não falo da nossa habitual sombra, que também gosta de aparecer...

(Fotografia de Luís Eme)

sábado, fevereiro 27, 2016

«A si ainda posso pedir para falar mais baixo, agora ir para a rua mandar calar os carros, não dá muito jeito.»

As sessões de poesia têm algumas parecenças com as casas de fado, pedem ambas silêncio. Claro que nem sempre é possível.

Provavelmente a escolha do local para a "Poesia Vadia" não foi a melhor. De vez enquanto passavam carros e até o metro e autocarros na rua. Mas mesmo assim não eram tão incómodos como as duas vozes humanas que colocavam a escrita em dia à entrada da Oficina.

Quando me levantei e pedi para falarem mais baixinho, não estava à espera que o sujeito de cabeça barbeada, me questionasse sobre o barulho dos carros...

Ainda lhe respondi baixinho, antes de virar costas: «A si ainda posso pedir para falar mais baixo, agora ir para a rua mandar calar os carros, não dá muito jeito.»

Claro que não voltei a mandar calar mais ninguém, até por saber há muita gente que não morre de amores pela poesia...

(Fotografia de Luís Eme)

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Uma Bela Maneira de Chegar a Sexta-Feira


Os cabelos brancos são apenas um sintoma, de que já vivemos há algum tempo por aqui, de que já conhecemos os outros um bocado bom. Muitas vezes até mais do que queríamos... 

Talvez seja por isso que começamos a sentir quase o mesmo prazer em dizer não e sim.

O mais curioso é nem sequer precisarmos de ser cínicos ou hipócritas, com a mesma medida de quem faz da vida um oficio de fingimento. Pena serem tão maus actores, caso contrário poderiam ter futuro na arte de talma...

Foi isso mesmo. Hoje gostei de dizer não. Seguido de um «não quero e não me apetece.» E gostei também do ar de espanto que provoquei...

Que bela maneira de chegar à sexta-feira.

(Óleo de Juan Carlos Liberti)

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Saudades de Outras Conversas...

Tenho saudades de ter conversas quase malucas, distantes do país dos "larápios" que têm como segunda profissão, políticos ou banqueiros. Conseguir fingir que uma música, um poema, um filme, um quadro ou uma fotografia, são mais importantes que tudo o resto que gira à nossa volta.

Mas o capitalismo é tão cabrão, que já nos espia em quase todas as esquinas da vida.

Se ele fosse o "adamastor" dos nossos tempos como o Adriano lhe chama, ainda havia alguma esperança de se virar este "cabo das tormentas". Mas é muito pior que isso.

Talvez a Rita tenha razão, quando diz que lhe andamos a facilitar a vida, diariamente. Tornámos tudo mais visível, mais fácil de espiar e espiolhar. É quase como se andássemos todos vestidos de roupas transparentes, oferecendo a possibilidade aos outros de descobrirem as cores da roupa interior (quem usa...).

E se até o jornalismo perdeu o respeito pela verdade e pela notícia, desde que ganhou o hábito de inventar, quando não sabe, não nos podemos admirar que ande tanta gente por aí a dar cambalhotas...

Mas o mais grave é não vermos fim à vista deste "pesadelo", cada vez mais próximo das ditaduras. Pesadelo alimentado por toda esta gente mentirosa, bem vestida e bem falante, que olha para o mundo e em vez de ver pessoas só vê a "merda" do dinheiro...

(Fotografia de Luís Eme)

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

A Dificuldade em Definir a Poesia...

Claro que a poesia não é tudo, como uma vez disse. Nem sequer é quase tudo.

Acho que pode, e deve ser, o melhor da literatura, pelo menos em beleza e magia.

Não é uma mulher bonita, nua, com saltos altos, a passear por aí, como gosta de dizer o Ferreira (isso é apenas um belo escândalo...).

Também não é a colagem crua de palavras que usamos em dias de festa ou a rima forçada.

Estive a pensar e talvez a poesia seja o encontro feliz das palavras, que além de ganharem magia, abraçam-se e conversam a pensar no hoje, no ontem e no amanhã.

E sim, mesmo que não seja apenas isso, deve ter a beleza da mulher...

(Fotografia de Joahan Van Keuken)

terça-feira, fevereiro 23, 2016

«Então, sempre podemos fugir a fingir só por uma manhã?»


Ela fingia-se distraída, como medo de aceitar desafios que a deixavam a caminho da loucura.

Ele insistia: «Então, sempre podemos fugir a fingir só por uma manhã?»

Sem esperar por resposta continuou: «Até podes levar uma mala e fingir que o mundo abriu todas as portas para nós e que convidou o vento a dar-nos um empurrão dos bons. Queres?»

Ela sorriu. E voltou a sorrir. Ele não se fez desentendido.

«Eu sei, um sorriso como resposta é quase um não.»

Ela continuou a sorrir perigosamente e ele sem dar parte fraca disse-lhe:

«Está bem, ganhaste, vou sozinho. Mas vou fingir o tempo todo que estás no lado do pendura. Só preciso de gravar o teu sorriso, para me fazer companhia, enquanto finjo que vou fugir deste mundo cabrão...»

(Fotografia de Antanas Sutkus)

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

A Vagabundagem sem Mestre


Não sei se todos temos algo de vagabundo. Eu sei que tenho várias coisas.

Não gosto nada de andar demasiado "engomadinho", ou "penteadinho". Não sei se esta "alergia" tem alguma coisa que ver com o gosto que a minha mãe tinha em me vestir igual ao meu irmão, de alto a baixo, quando o domingo era um dia diferente dos outros. Onde ainda é possível recordar estas "toilettes"  é nas fotos de casamentos, que nem sempre deviam ser guardadas...

Claro que esta vagabundagem de que falo, é "limpa", não tem nada contra a água, o sabonete ou o champô, é amiga do ambiente (meu e dos outros).

Estas coisas da vagabundagem são sobretudo estados de alma. O preferir as calças de ganga gastas às que brilham, é apenas um apêndice.

Não vou tão longe como um poeta amante da vagabundagem, que só a muito custo não começava a rebolar no chão como os cães, com e sem pulgas, mas que às vezes apetece dar um salto no escuro, lá isso apetece...

(Fotografia de Edouard Boubat)

sábado, fevereiro 20, 2016

Reler para Recordar...

Acabei de ler (mais uma vez...) a entrevista que a Anabela Mota Ribeiro fez ao Dinis Machado, para o bonito "DNA", em Março de  2000. 

Fiquei a espaços com os olhos brilhantes, a pensar neste companheiro, com quem passei algumas tardes deliciosas, a falar de quase tudo, até do que está dentro dos livros e dos filmes...

Embora não saiba explicar muito bem porque razão volto a reler as palavras do "Dennis", talvez exista em mim uma vontade de estar novamente sentado na frente do homem simples, pouco palavroso, que além de ter sempre os bolsos cheios de coisas giras, partilhava comigo o fumo das suas cigarrilhas...

(Fotografia de Edouard Boubat)

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

A "Porta do Tejo"


Esta é uma das fotografias com que participo na "Festa das Artes da SCALA", que será inaugurada amanhã às 16 horas na Oficina de Cultura em Almada. 

Chamei-lhe, "Porta do Tejo" e foi tirada na Quinta da Arealva.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Dilemas Humanos...

Quando se nasce perto do mar ou de um rio largo como o Tejo, é quase incompreensível não se saber nadar, até por uma questão de sobrevivência.

Sim, sobrevivência. Sempre me pareceu estranha a versão de que muitos pescadores preferiam não saber nadar, para em caso de naufrágio, sofrerem menos. Podem sofrer menos, mas dificilmente sobrevivem, pelo menos quando se estabelece uma comparação com os seus companheiros que sabem nadar.

Mas quem nasce a centenas de quilómetros do mar e apenas com ribeiros por perto, pode mesmo chegar à idade adulta sem saber nadar. Com algum jeito, é possível esconder esta limitação, fingindo por exemplo não gostar dos banhos de mar, por causa das ondas e da temperatura da água.

Andar de bicicleta é quase a mesma coisa...

Estou a escrever porque houve alguém que me perguntou: «Se eu te dissesse que não sabia nadar nem andar de bicicleta, o que é que chamavas?»

Claro que a primeira palavra que me surgiu foi mentirosa...

Mesmo sabendo que se pode viver sem problemas de maior, pois nadar ou andar de bicicleta estão longe de ser coisas essenciais no nosso dia a dia citadino.

(Óleo de Pino)

terça-feira, fevereiro 16, 2016

O Monólogo de um Potencial Escritor de Policiais

«Não é nada imaginação minha, ela queria mesmo que eu enlouquecesse. Porquê? Porque o amor está mesmo a menos de um palmo do ódio.»

Olhámos uns para os outros, sem conseguir perceber onde estava a verdadeira loucura. Ele percebeu a nossa incapacidade de dizer o que quer que seja. E foi então que começou a fazer desenhos.

«O seu passatempo preferido nos últimos tempos era mudar as coisas dos sítios e depois perguntar-me se eu sabia onde estava isto e aquilo. Quando eu já estava a começar a duvidar do meu estado psíquico, ela cometeu um daqueles deslizes imperdoável, que vêm dos livros, a chamada "morte do artista", deitando tudo a perder. O que é que eu fiz? O que as mulheres gostam de nos fazer. Mudar a fechadura e colocar as suas coisas do lado de fora da porta das escadas. Sim a rua também é das cadelas.»

Foi então que soltou uma gargalhada sonora e com um grande "latão" perguntou-nos se tínhamos gostado do enredo do policial que estava a escrever...

(fotografia de Ernest Haas)

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

O Homem do Cachimbo e os Intelectuais


Há pessoas que gostam de "decretar" o fim das coisas.  Como devem calcular, não estou a falar da mercearia de esquina que nunca mais voltou a abrir. E muitas vezes quanto maior é a sapiência, maior costuma ser o trambolhão nestas "certezas"...

Por exemplo, já ouvi dezenas de vezes a frase de que já não existem intelectuais. Não sei até que ponto é verdade, por nunca ter percebido muito bem o que é isso de ser intelectual. E também não tenho a certeza que foi uma invenção dos comunistas, para catalogar os seus pensadores sem qualquer grau académico, mas com um conhecimento profundo de quase todas as teorias do mundo (graças à leitura...). talvez seja apenas um estado de alma...

Mas gostei do ar de surpresa da minha filha ao descobrir na rua um homem de meia idade a fumar cachimbo, algo que ela disse só conhecer das séries do século passado que eu gostava de ver na RTP Memória ("Poirot" e "Sherlock Holmes"). E acabámos os dois a sorrir.

Mas o mundo mudou um bocadinho. Por exemplo, as pessoas que escrevem são cada vez mais normais (só alguns artistas plásticos e músicos é que ainda gostam de se vestir como se estivessem ligados ao mundo da moda...), não usam "papillon" ou boina basca, nem fumam cachimbo. Três "retratos" que também faziam parte dos desfiles do Chiado (que ainda era possível encontrar antes do grande incêndio...), a par das senhoras bem vestidas que enchiam as casas de chá com sacos de compras.

(Fotografia de autor desconhecido)

domingo, fevereiro 14, 2016

«Se alguém tivesse uma loja só de coisas feias, tinha de fechar portas.»


Tive um professor português que além de mau professor era mentiroso.

Gostava de dizer que não existiam mulheres feias. Talvez fosse dos óculos. Ou então um quase acto de cavalheirismo, de quem, por também não ser muito favorecido pela beleza, gostar de dar a entender que era capaz de gostar de qualquer mulher. O que eu acho, à distância de quase quarenta anos, é que ele era sobretudo um dissimulado, que passava o tempo a "lançar a rede" (uma daquelas finas capaz de apanhar tudo e mais alguma coisa, proibidas por lei...). 

Por não apreciar o nosso humor quase escuro e trocista, vingava-se nas notas. Mostrando aí sim, a sua predilecção pelas damas...

Claro que ele sabia que havia pessoas bonitas, giras, assim-assim, feias e assustadoras. Todos sabemos, nascemos com um sentido estético muito próprio que nos permite gostar de coisas diferentes (e ainda bem...), mas que não difere muito quando se aborda a beleza que nos cerca.

Toda esta conversa porque lá na "mercearia" toda a gente estranha que a Lúcia não tenha ninguém, pelo simples facto de ser uma mulher bonita. Se fosse assim-assim ou feia, era normal que ninguém "lhe pegasse" (foi a expressão utilizada por outra mulher...), mas assim...

Quem se diverte e nos diverte quase sempre com estas conversas banais é a Rita, que disse: «Se alguém tivesse uma loja só de coisas feias, tinha de fechar portas.» Acrescentando: «Até podia ter muitos clientes, mas iam lá sobretudo para ver a mercadoria e não para comprar.»

Ela é do melhor a pegar na "bússola" e a mudar rumos de conversas.

(Fotografia da inconfundível Marylin por Henri Cartier-Bresson)

sábado, fevereiro 13, 2016

Um Pedaço da Manhã no Café

Não posso dizer isto muito alto, mas quando estou sozinho no café é quando me surgem mais ideias para escrever. Espero que os meus amigos não fiquem muito chateados, mas é verdade. As conversas dão lugar a uma atenção visual diferente, sobre tudo o que nos rodeia.

Foi por isso que escrevi matéria suficiente para ser publicada por aqui no "Largo" durante quase uma semana.

Às vezes basta um penteado. como o da  mulher jovem com o cabelo mais vermelho que ruivo, para viajar no tempo... ou a conversa gestual da sua companheira de mesa, com a boina de xadrez.

Normalmente olho para todos os lados com olhos de ver. Não tenho a arte das mulheres, que são capazes de nos verem sem olhar (é mesmo uma arte...). Sei que me vêem escrever no pequeno bloco que me acompanha (ou nos guardanapos-bíblia, quando finjo que não venho preparado para escrever...), mas ao que parece ninguém acha que isso seja uma "anormalidade", pois ninguém olha para mim como se fosse um "fenómeno do entroncamento". 

E se olhassem, não seria por isso que deixaria de escrever, embora tenha a percepção de que muita gente não quer protagonista de nenhuma história, sem saber...

(Fotografia de Luís Eme)

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Uma Fadista, um Poema...

Quando se tem o vicio de escrever todos os dias, as coisas acontecem quase sem se dar por isso. Felizmente o computador substitui os papeis que poderiam encher as gavetas e faz com que muita desta escrita seja "invisível". 

E há sempre projectos que se iniciam e ficam a meio, à espera de inspiração...

Como também escrevo poesia comecei um caderno a que dei o nome, "Queria que Fossem Quase Canções (poesia para cantar)", onde homenageio gente que canta e que gosto.

Como daqui a uns dias um desses poemas se vai tornar público (publicação num boletim), resolvi apresentá-lo em primeira mão aqui no largo:

(para Aldina Duarte)

Um Fado

A sala escurece
A rua amanhece
Tu cantas a emoção
Entras dentro do coração
De quem fecha os olhos
Para ouvir a tua luz
Para ouvir o bater
(um quase truz-truz)
Do teu coração
que entregas
de uma forma desalmada
ao fado-canção
que enche a madrugada.

Luís Milheiro  

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

O Coxo que Fingiu Querer Passear no Largo...

Quando me surge uma ideia maluca, daquelas que podem resultar no mundo estranho da literatura, escondo-a quase sempre dos blogues.

Mas hoje, ao passar os olhos por um dos cadernos onde guardo algumas personagens, houve uma que quis mesmo sair e ir dar uma volta até pelo Largo. Fiz-lhe a vontade...

«Aquele homem, que não conhecia de sitio nenhum, disse-me em jeito de segredo, que desconfiava que Deus era mesmo capaz de existir.
E começou a contar-me a sua história:
- Eu estava desempregado e acabei por ter a ideia luminosa de me fazer passar por coxo no metro de Lisboa. Coloquei uma palmilha desconfortável num dos sapatos, muni-me de um par de canadianas e aí andei eu, sempre com a mesma lengalenga: a pedir qualquer coisa para comer. 
Sorriu antes de continuar:
- Às vezes davam-me os lanches, que aceitava muito agradecido, para não estragar o número com a soberba. Só não sabia o que vinha a seguir...
Coçou a cabeça e olhou para o chão antes de continuar:
- Passadas duas semanas, ao tirar a palminha do sapato e andar por ai, senti que continuava a coxear. Pensei que passava mas não passou. E nunca mais parei de coxear, mesmo sem canadianas. Já tinha ouvido falar que Deus está mais atento do que parece à nossa vida, e que castiga quem se porta mal, etc. Mas porra, eu só fiz isto por precisar mesmo de dinheiro para sobreviver. Nem sequer roubei ninguém. E só me dava esmola quem queria. Sabe, se pudesse gostava de ter uma conversa com esse tal Deus, que nem sequer sei se existe.
Eu cada vez menos dado a religiosidades, ofereci-lhe um cigarro e paguei os nossos dois cafés, mesmo sem ser parente de qualquer deus.»

(Fotografia de Roger Schall)

quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Olhar a Velha Escola sem Grandes Saudades. Tudo Graças aos "Pink Floyd"...

Não quis dizer a ninguém que tinha sido um felizardo, que tive uma professora na primária que era um doce, que me deu apenas as reguadas que teve de dar. Sei que em quatro anos, foram uma insignificância, até por ser dos seus melhores alunos.

Lembrei-me da sala de aula da escola primária desse meu tempo, com os quadros de Marcelo e Tomás por cima do quadro (não me lembro de nenhum crucifixo...), das janelas que nos iluminavam, por onde vi o Carlos (já com os seus catorze anos...) a fugir,  mais que uma vez, por por não aguentar aquela "prisão".

Ele morava no meu bairro e já andara na escola com o meu irmão e embora fingisse que era um rapaz terrível, fazia questão de ser meu amigo e um dos meus guarda-costas (foi mais ao menos a profissão que seguiu. A última vez que falámos era segurança pessoal do dono de um império nocturno, com várias discotecas e bares no Oeste).

Comecei a escrever e a fugir daquilo que queria dizer. As memórias são assim. 

O tema principal da conversa era a qualidade dos Pink Floyd e do álbum, "Another Brick in The Wall" (que até deu um filme que continuo a gostar de ver), que me fizeram lembrar das histórias de violência que ouvia, passadas em outras salas, de professores amargos, que além da utilização massiva da régua, gostavam de distribuir carolos, puxões de orelhas e até lapadas (no rosto e na cabeça...).

É por isso que quando ouço pessoas antigas a falarem com saudades do ensino do "outro tempo", gostava que lhes dessem um puxão de orelhas e lhes mostrassem uma régua. Talvez lhes trouxessem alguma coisa à memória...

(Fotografia de Robert Doisneau) 

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Era Dia de Dizer Mal dos Críticos...

Eu não era jornalista naquele "filme", era apenas o amigo da amiga. Mas adorei o retrato que a actriz fez dos jornalistas da cultura, normalmente conhecidos como críticos e com colunas fixas nos jornais de referência: 

«Eles podem ser pessoas frustradas por não terem talento para escrever, filmar, pintar ou encenar. Só não precisavam era de ser jornalistas, deviam ter escolhido outra profissão. Há tanta coisa inútil por aí...»

Fez uma pausa e depois de nos encher com o fumo do seu cigarro, continuou:

«Conheço-os ao longe, só pelo caminhar, parecem paus com duas pernas, tal a solenidade com que se dirigem a nós. Parecem mesmo pessoas importantes.»

Não houve ninguém que não sorrisse com este retrato. Mas ela queria mesmo era diversão:

«Fazem-nos perguntas estranhas, que só eles é que sabem responder. A nossa sorte é o traquejo da representação fazer com que sejamos capazes de alinhavar meia dúzia de frases falsamente profundas e deixarmos-os sem palavras.
É por isso que gosto mais dos tipos que quase não sabem fazer perguntas. Como não percebem bem os filmes nem as peças que vêem, perguntam quase sempre coisas giras, diferentes. Além de serem mais fáceis de enrolar tornam as entrevistas mais divertidas.» 

Fiquei a pensar que além de um sentido de humor apurado, era preciso coragem para falar assim, de um meio que se alimenta do "amiguismo" e do "lambebotismo"...

(Óleo de Kevin Chupik)

segunda-feira, fevereiro 08, 2016

Há Mentiras que só têm Graça por Serem, isso Mesmo, Mentiras


O Eça qualquer coisa estava a passar na rua e ficou estarrecido a ver dois homens bem vestidos, entretidos, cada um a morder a sua meia. Embora visse pouca televisão, os seus rostos não lhe eram totalmente desconhecidos. 

Um pouco mais à frente viu um pobre diabo, vestido de farrapos, completamente descalço a contar um pequeno molho de notas, sem conseguir esconder um sorriso largo, quase de quem ganhara a sorte grande.

Continuou a pensar nos dois homens que vira anteriormente e pela protuberância do nariz do mais pequeno desconfiou que era um tal de Portas. E outro só podia ser um Coelho, que já fora primeiro-ministro e gostava de fazer a corte a uma alemã loura, meio homem meio mulher, que tinha a mania que era a "rainha da Europa".

Mas ao cruzar-se com o conhecido Pacheco, cronista afamado pelas suas histórias de escárnio e maldizer, este contou-lhe que um tal António que tinha dado à Costa, além de conseguir ser o chefe de governo sem ganhar eleições também conseguira ver o orçamento, amaldiçoado por quase todos, ser aprovado em Bruxelas. E pelo caminho chegara a acordo com os donos da TAP, para que o controle da companhia dos aviões fosse administrado a "meias" pelo Estado e pela nova gerência.

E como resultado havia uma gentinha maluca que além de serem apanhados com frequência a dar cabeçadas nas paredes, também andavam por aí a comprar meias quase em decomposição, porque um fulano, que toda a gente chama de "Múmia", que vivia em Belém, disse que as ditas faziam milagres para a azia e dores de fígado, de dentes, de corno ou de outra coisa qualquer.

Quem não cabe de contente são os sem-abrigo, que começam a não ter mais meias daquelas que ficam de pé para vender. Até dizem que o Natal desta vez chegou muito mais cedo à Cidade. Nem sequer são obrigados a tomar banho para tomar um refeição decente ou a fazer uma vénia à sotora Jonet, "mãe dos pobrezinhos"...

(Óleo de Georges Coronimas)

domingo, fevereiro 07, 2016

Transformaram a Injustiça numa Verdade de "La Palice"...


O mundo é injusto. Todos o sentimos, diariamente. Mesmo que não seja com o nosso corpo, sentimos pelo olhar daqueles de que gostamos e nos rodeiam.

Não sei qual a melhor forma de o combater. Podia ser a lutar, mas muitas vezes nem sequer sabemos contra quem estamos a lutar.

Ignorar a injustiça, transformá-la em algo que só existe na nossa imaginação, também está longe de ser uma solução. Porque não afasta o problema. É quase como varrer a sujidade do chão para debaixo do tapete, ou ficar á janela a ver o "mundo a passar"...

Também não acredito que a injustiça se combate com a injustiça. Mas também  tenho de confessar que, tornando a conversa mais terrena, cada vez confio menos em juízes ou advogados, por muitos juramentos que tenho feito quando entraram na profissão...

E eles são peças fundamentais para tornar o mundo um nadinha mais justo.

(Óleo de Pino)

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Esquecido do Carnaval


Se não visse uns miúdos vestidos como se fossem para um baile de máscaras nas suas escolas, nem me lembrava que estamos no carnaval.

Contei isto ao café, assumindo que estava a ficar velho. Do outro lado disseram que eram apenas sinais de maturidade, de quem já não tem muita vontade de viver a fingir nem de se meter em "carnavais".

Também disse que não tinha achado piada ver um miúdo fardado de polícia. Embora soubesse que isso aconteceu porque olhamos sempre para o outro pelo nosso prisma do "mundo". E como eu me vestiria mais facilmente de ladrão que de "chui"... 

Mas há sempre a possibilidade do pai ou o avô serem polícias e de ele sentir um orgulho enorme em se vestir desta maneira...

(Óleo de Pablo Picasso)

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Uma Memória Deliciosa


Hoje lembrei-me de ti, ao ver um casal de pequenotes a caminhar na rua, ele a fingir dar-lhe pouca confiança e ela a não parar de o perseguir e de se meter com ele.

Sorri para dentro de mim, ao lembrar-me que também não queria que me desses a mão quando andávamos os dois na rua. Só o podíamos fazer no quintal do nosso prédio. Como se ter uma namorada em tão tenra idade fosse tudo menos um motivo de orgulho...

Foi quando pensei que nós homens e mulheres, andamos por cá há já tantos anos (uns bons milhares...) e ainda não aprendemos a lidar com as nossas diferenças, e a amar com naturalidade...

(Óleo de Dima Dimitriev)

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Mais Reflexões Literárias...

De todos os livros que escrevi sobre a história local almadense, há dois que me merecem um destaque especial, pelo simples facto de terem sido escolhidos e idealizados apenas por mim.
Eu escrevi assim (para logo...):

«De todos os livros que escrevi sobre Almada, há dois que escrevi mesmo por vontade própria. O primeiro foi, “Almada e a Resistência Antifascista”, em que fiz 25 biografias de pessoas que se destacaram na luta contra o salazarismo e também relatei 25 acontecimentos importantes sobre a então Vila de Almada. E depois também fiz aquela que ainda deve ser a mais completa cronologia sobre os acontecimentos sócio culturais e políticos de Almada, entre 1926 e 1974.
A minha vontade de escrever este livro ficou a dever-se à comemoração dos 25 anos da Revolução de Abril e à minha vontade de homenagear os resistentes almadenses, a gente conhecida e anónima que teve a coragem de se sacrificar por um tempo novo, com mais liberdade e justiça social.


O outro livro que também quis escrever foi, “Francisco Bastos, António Calado e a JACA”, com o objectivo de devolver estes campeões à história de Almada, até por serem os grandes desportistas almadenses do século XX, por excelência. Francisco Bastos e António Calado foram campeões e recordistas nacionais de atletismo, de meio fundo. Bastos foi inclusive recordista ibérico de 800 metros e foi quase o Fernando Mamede do seu tempo, sendo imbatível nas provas de pista dos 400 aos 3000 metros durante quase uma década.

Esta ideia começou a ganhar força depois de uma exposição que foi feita sobre Associativismo no Museu da Cidade, em que os Campeões da JACA foram completamente esquecidos.»

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

A Teimosia Com e Sem Ruído

Já era noite quando dei por mim a pensar na teimosia, ou melhor, no facto de todos sermos teimosos. A única diferença é a forma como agimos, com muito ou pouco ruído...

Há quem não consiga ser teimoso sem uma boa discussão, da mesma forma que há quem consiga ser teimoso sem qualquer discussão. Isto assim escrito, até parece cómico.

Nós ao almoço fazemos demasiado barulho no restaurante, com o sorriso dos empregados (umas vezes mais amarelo que outras...), que não devem perceber muito bem como é que refilamos tanto uns com os outros e continuamos amigos. Claro que se estiverem com atenção, percebem que há por ali muito "teatro", muita provocação, daquela que apenas pretende soltar o riso sem sizo. E também muita teimosia, da tal ruidosa. A boa, aquela em que pouco fica por dizer...

Depois de largar aquela gente barulhenta e boa, sou confrontado com a tal teimosia silenciosa, ao telemóvel. Essa mesmo, que é quase sempre cobarde, de quem prefere agir sem ruído, na calada do dia ou da noite...

É quando concluo que a sabedoria popular às vezes está errada, porque nem sempre quem cala consente. Por vezes prefere fingir que sim, para depois fazer que não...

É por isso que gosto muito mais dos meus queridos amigos teimosos e ruidosos.

(Óleo de Jean Gabriel Domergue)