sábado, dezembro 02, 2023

«Não. Não temos de ser cada vez mais pobres, para meia-dúzia de pessoas serem cada vez mais ricas.»


Enquanto escrevia o texto que publiquei ontem no blogue, a RTP1 estava a transmitir uma reportagem sobre a rede de supermercados "Mercadona", denunciando o assédio laboral, e ainda questões ainda mais preocupantes (que se metem com a nossa liberdade individual, como a proibição das chefias - mesmo intermédias - de terem relações de amizade com subordinados). 

Nem de propósito...

É triste ver que este nosso Portugal continua a ser para cada vez para menos gente (os turistas estão obviamente fora desta equação). Dos jovens já escrevi o suficiente ontem. Em relação às pessoas com mais idade, as coisas ainda se tornam mais graves. Graças ao egoísmo e à falta de humanidade, quando começam a necessitar de mais atenção são "depositadas" em lares. Através de reportagens televisivas temo-nos apercebido do dia a dia de muitos lares, que não passam de  "asilos", onde se tenta roubar às pessoas a pouca dignidade que lhes resta...

Mas quem está na chamada "idade produtiva (e contributiva)", também enfrenta cada vez mais dificuldades no seu dia a dia. Tem de lutar contra o aumento diário dos bens essenciais de consumo, a que se somam o das rendas ou empréstimos  das casas e também o dos combustíveis. Curiosamente, ou não, todos sabemos que enquanto pagamos estes aumentos, os bancos, as gasolineiras e as grandes empresas de distribuição alimentar têm lucros diários de milhões.

Pode ser populista, mas trata-se de um "roubo" diário, com a complacência de quem governa (que também lucra milhões...).

É por todas estas razões que sou contra o "liberalismo", tão defendido pelos nossos governantes, especialmente de direita. Só cria, dia após dia, mais diferenças sociais, os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e em maior número...

E é por isso que digo: «Não. Não temos de ser cada vez mais pobres, para meia-dúzia de pessoas serem cada vez mais ricas.»

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, dezembro 01, 2023

Continuar a seguir a mesma marcha, para trás (nestes tempos de mil e uma promessas)...


Ontem peguei na Carolina ao colo e gostei daquela sensação, até por ela ser uma bebé alegre. Mais tarde dei por mim a pensar que há já alguns anos que não andava com um bebé ao colo.

À minha volta estavam dois casais ainda sem descendentes (os meus sobrinhos) que já ultrapassaram os trinta e não falam sequer em ter filhos...

Como vivem bem e têm bons empregos arranjei logo duas justificações para que isso aconteça: pelo desejo dos jovens em prolongarem a juventude (por culpa dos pais que lhe dão demasiado conforto...) e também por vivermos tempos adversos à criação de novas famílias.

Mas o problema não é assim tão simples. Até porque a maior parte dos jovens não têm o nível de vida deles...

Se olhar para este nosso país, com alguma profundidade, encontro muitas mais razões. A principal talvez seja a "despreocupação social", com pelo menos vinte anos, para com os jovens (quando se começou a acentuar a quebra da nossa taxa de natalidade...). 

Com ela veio o aumento da precaridade do emprego e a dificuldade em arranjar uma casa a preços decentes, que deverão ser os problemas mais graves, e que nenhum governo se preocupou em resolver, num tempo que só foi de "vacas gordas" para meia dúzia de pessoas...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quinta-feira, novembro 30, 2023

Prémios enfiados dentro de "nuvens cinzentas"...


De longe a longe apanho uma ou outra notícia (antigas e raras...) de gente que recusou prémios, normalmente literários, por não os considerar justos... ou apenas por aparecerem tarde demais... 

Antes de Abril não se dava qualquer destaque a estes acontecimentos (bendita "censura", que até protegia os júris dos "prémios literários"), assim como a outros que fossem passíveis de provocar polémica na nossa "santa terrinha".

Lembrei-me disto e doutras coisas, quando cheguei a casa, depois de ter passado pela pista de atletismo municipal e perceber que agora tinha um patrono, que estava longe de ser a grande figura da modalidade no concelho de Almada (vou escrever sobre isso no "Casario").

O mais curioso é que durante a tarde tinha-me deparado com uma entrevista (já com uns anitos) de Rodrigo Guedes de Carvalho, em que ele diz: «O meio literário é uma nuvem cinzenta, sem rosto, cheia de sussurros, uma casta que manobra, que atribui prémios ou que se insinua junto de agentes para traduções e que vai de alguma forma impondo uma ideia do que é bom e do que é mau, sem que ninguém lhe tenha perguntado nada.»

Apeteceu-me sorrir quando recordei um escritor amigo, que já não está entre nós, que me contou da sua felicidade quando recusou um prémio literário, com alguma importância, por sentir que este já chegava tarde demais. Disse-lhes que não precisava nem queria aquele prémio para nada. Mas eles fingiram que não se tinha passado nada e deram o prémio a outro autor, que deve ter ficado feliz da vida...

Sei que isto diz muito de nós, pois nem na atribuição de prémios, ou de outras honrarias, conseguimos ser dignos e justos. Privilegiamos mais a amizade e o compadrio, que a qualidade...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quarta-feira, novembro 29, 2023

Os comentários que vão directamente para o "spam"...


Só hoje é que dei uma olhadela aos vários comentários que têm ido parar ao "spam", vá lá saber-se porquê...

Por engano (e lentidão do computador, está a pedir reforma há já uns tempos...), apaguei um comentário da Rosa sobre o último texto que publiquei. Tentei recuperá-lo mas tal não foi possível (desculpa Rosa...). Foi durante essa tentativa que descobri que tinha mais de 150 comentários no "spam"... Alguns com dez anos.

Republiquei os mais recentes e reparei que a maior vítima do "spam" era a Graça Pires, que tinha dezenas de comentários "perdidos"...

Peço desde já desculpa pela minha desatenção e deixo a promessa de visitar pelo menos uma vez por semana  o "spam" dos comentários.

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


terça-feira, novembro 28, 2023

O gosto doentio de acusar antes de julgar...


É quase como uma "peste", esta mania de se estar sempre a apontar o dedo ao outro. As redes sociais ainda agravaram mais esta nossa deficiência moral, de quem apenas se olha ao espelho, para se pôr "bonito" e ir espreitar ao mundo, mesmo que este número não passe de uma farsa.

Não sei se me assusta ou se me enoja, esta nossa nova forma de vida, que valoriza cada vez mais o espectáculo e a mentira, como se tudo o que nos rodeia não passasse apenas de ficção.

O mais grave, é que nem a própria justiça conseguiu escapar imune a esta "peste".

Quando é que tudo começou? Não sei bem. Talvez com o juiz que foi até aos Passos Perdidos prender um político suspeito de pedofilia (que depois até recebeu uma indeminização de ter estado preso sem culpa formada...). Outro bom espectáculo televisivo, foi a prisão em directo, no aeroporto, de um ex-primeiro-ministro (que depois desse "número" e de ter estado em prisão preventiva, foi devolvido à  liberdade, ainda sem ter sido acusado de qualquer crime...). Há inclusive um canal televisivo (CMTV) que trata todos estes casos de polícia como se fossem "telenovelas", com episódios diários, onde nunca falta o "suspense" final, para que se sigam os próximos capítulos.

Infelizmente, o poder judicial nunca mais deixou de estar colado ao jornalismo mais rasteiro e abjeto que existe entre nós, que além de não respeitar o "segredo de justiça", adora acusar antes de julgar.

E se chegámos a um tempo em que são os próprios agentes judiciais, que dão mostras de preferir os "julgamentos públicos" na comunicação social à aplicação da lei nas salas de audiência, parece fazer cada vez menos sentido a existência de tribunais...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


segunda-feira, novembro 27, 2023

A vez do teatro (e do associativismo)...


Já falei mais que uma vez da "tertúlia" (a "Tertúlia do bacalhau com grão") que tínhamos às segundas-feiras no restaurante "Olivença", no centro de Almada. Tertúlia essa que passou a um almoço quase sempre a dois - de longe a longe passa a quatro, quando o Mário e o Marinho aparecem. Mas nem por isso é menos rica em episódios marcantes. Para que isso aconteça, basta que eu dê "corda" ao Chico...

Desta vez o Teatro voltou a ser Rei... 

O Chico não me falou apenas das peças marcantes, do olhar diferente dos encenadores em relação ao palco, desde o "certinho" Malaquias de Lemos ao "desconcertante" Rogério de Carvalho. Falou-me sobretudo da alegria que sentia em representar e do ambiente de grande cumplicidade e camaradagem que sentia, aqui e ali. Embora a Incrível fosse a sua principal casa, adorou representar na Trafaria, onde se vivia e amava o teatro de uma forma especial...

Também voltou a "idolatrar" Fernando Gil, que foi uma das figuras mais marcantes da história da Incrível Almadense, onde foi um "faz tudo". Além de ter sido Presidente da Direcção durante vários mandatos também adorava o teatro e foi um bom actor amador. Reviveu vários episódios hilariantes, vividos em peças dramáticas, como "Duas Causas" ou "Amanhã há Récita" mas também em peças carnavalescas, onde Gil se transvestia, ano após ano, com uma graça única.

E para terminarmos o almoço da melhor maneira, o Chico recordou, mais uma vez, o sentido de comunidade e de pertença que existia  na relação de muitos almadenses com a Incrível. Deu o exemplo das muitas famílias que cresceram por ali (deu um destaque especial aos Tavares, pelo desaparecimento do José Luís...) sem esquecer os muitos casamentos que tiveram a bênção da "Rainha do Associativismo Almadense"...

(Fotografia de Luís Eme - Almada, com o Chico em grande plano na exposição "50 anos 50 retratos")


domingo, novembro 26, 2023

A véspera e o dia seguinte...


Li a entrevista de Mário Tomé no "Expresso" e embora seja de esquerda, não comungo de uma boa parte dos seus pontos de vista sobre o 25 de Novembro. 

Hoje digo, felizmente, que tinha apenas 13 anos no final de 1975. Isso permite-me ter o distanciamento necessário para fazer uma leitura e análise, mais profunda,  e também mais livre, sobre este dia, difícil de classificar.

Um dos meus melhores amigos nos últimos vinte anos era um "Capitão de Abril" (Carlos Guilherme), que embora pertencesse ao Movimento dos Capitães, no dia 25 de Abril de 1974 estava a terminar mais uma comissão, em Angola (que se prolongou no tempo, graças aos gritos revolucionários que se seguiram depois do 26 de Abril, de "nem mais um soldado para Angola"...). Mas no 25 de Novembro já estava entre nós e fez parte do comando de operações. Conversámos muito sobre os momentos mais importantes da Revolução (do 16 de Março ao 25 de Novembro).

Mas o que quero destacar é o testemunho que recebi dos principais intervenientes nestas duas datas histórias, durante os almoços promovidos pela Associação 25 de Abril, que tinham um convidado especial (Carlos Guilherme fazia questão de me convidar e estive presente em mais de meia-dúzia deles...), que depois nos brindava com uma palestra - normalmente era um "Capitão de Abril". Como devem calcular, os temas apresentados eram sempre pertinentes,  e tinham a vantagem de no final, serem debatidos e contrariados (se fosse caso disso...) pelos presentes, que também tinham sido "actores" nos mesmos "teatros de guerra".

Sobre o 25 de Novembro, escutei mais que uma intervenção. Não esqueço o testemunho do responsável pelo Forte de Almada, que na época era uma unidade militar. Ele pertencia à facção mais esquerdista dos militares, mas mesmo assim, obedeceu às ordens que recebeu de Otelo, para não distribuir armas a ninguém, nem que para fosse necessário colocá-las em celas fechadas e fazer desaparecer a respectiva chave. Nesses dias quentes houve várias manifestações populares no exterior do quartel (com tentativas de invasão do Forte...), organizadas pela extrema-esquerda.

Percebi através do testemunho de Otelo que, o que estava verdadeiramente em causa era a eclosão de uma guerra civil. O que os militares queriam evitar a todo o custo (tal como acontecera com a Revolução de Abril...), era o derramamento de sangue de gente inocente.  Foi por isso que ele acatou as ordens do Presidente da República, o general Costa Gomes, ordenando às  unidades que ainda lhe eram fiéis, para que não saíssem para a rua (com relevo para os fuzileiros e para os pára-quedistas, os únicos com capacidade para derrotar os comandos...) nem reagissem a provocações.

Há muito quem chame cobarde ao Otelo (especialmente as pessoas da extrema-esquerda). Eu tenho cada vez mais dúvidas de que o seu posicionamento no 25 de Novembro, seja o de um homem cobarde.

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sábado, novembro 25, 2023

25 de Novembro: o corte com os excessos da esquerda e da direita (que acabou por ditar também o regresso a "velhos hábitos"...)


Só as pessoas que não têm conhecimento da nossa história recente (ou que têm outros interesses, mais obscuros, como parece ser o caso do "alcaide" de Lisboa), é que podem querer comparar o 25 de Abril de 1974 com o 25 de Novembro de 1975.

O 25 de Abril é único. É o dia da revolução que devolveu a liberdade ao povo português, após quase 48 anos de ditadura. O 25 de Novembro é um movimento militar que procurou redireccionar o rumo da revolução, acabando com os excessos da extrema-esquerda (começaram a confundir liberdade com libertinagem) e da extrema direita (tentava dividir o país em dois, com acções violentas, especialmente na Região Norte).

O 25 de Novembro nunca foi festejado porque as pessoas que comandaram este movimento tinham consciência que a única vitória que conseguiram foi travar os excessos que se faziam sentir de Norte a Sul, ao mesmo tempo que colocaram o país de novo no rumo da democracia. Foi por que Vasco Lourenço,  Ramalho Eanes ou Melo Antunes, quiseram a ser apenas "Capitães de Abril" e nunca "Capitães de Novembro".

Infelizmente este novo caminho acabou também por ser aproveitado pelos meios mais conservadores (com a complacência do PS e do PSD...), com as grandes empresas e a banca a voltar, a pouco e pouco, para o controle das mesmas famílias que dominavam o país no Estado Novo, sem que Portugal obtivesse qualquer benefício com esta mudança. Sim, estas "famílias monopolistas", nunca se preocuparam com o crescimento e a modernização do país. A sua grande preocupação foi sempre o aumento do seu património e das suas contas bancárias...

São eles os principais responsáveis - a par dos muitos políticos medíocres do bloco central -, da nossa continuidade na cauda da Europa.

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, novembro 24, 2023

A Marinha entre a realidade e a ficção...


Quando finalmente foram feitas reportagens sérias sobre os efectivos existentes nas nossas forças armadas e se diz o que se calculava há bastante tempo, que a pirâmide estava invertida, que existiam mais oficiais e sargentos que praças, eis que surge hoje o CEMA, radiante, com o futuro nas suas mãos.

Quando ele disse ao "D. Notícias" «Estamos a construir uma nova Marinha. Uma Marinha que assegura a defesa do país, o exercício da soberania e da jurisdição nacional, a preservação dos nossos recursos e a proteção do ambiental.» E não satisfeito, comunica que: «Também modernizaremos os laboratórios da Escola Naval, que vão permitir uma formação de excelência dos nossos oficiais, preparando-os para a era digital e um novo paradigma de atuação.»

Talvez esteja aqui a "chave do futuro", a nova marinha seja só com oficiais, os tais da formação de excelência... Que ao mesmo tempo, também são incapazes de fazer o que alguns sargentos e praças fizeram nas ilhas, por um navio não estar em condições de navegar... (abanando ligeiramente o sonho do CEMA de um dia "ser presidente da república", com mais ou menos bananas).

Pois é, talvez os navios do futuro só tenham oficiais nas suas guarnições. Talvez... 

Nessa altura já devem existir "robots" para fazer o trabalho mais duro e chato dos navios, normalmente destinado às praças...

(Fotografia de Luís Eme - Cacilhas)


quinta-feira, novembro 23, 2023

"Ninguém como nós conhece o sol"...


"Ninguém como nós conhece o Sol"...

É este o título da biografia televisiva do poeta Sebastião Alba, que nunca conseguiu (apesar de milhentas de tentativas...) ser aquilo que se chama uma "pessoa normal", que também terá muitas definições.

Não conheci o poeta de Braga, o nome não me era estranho, mas só depois de ver este "rascunho televisivo" - de um poeta que nos seus últimos tempos se afogava em álcool e preferia a vida de andarilho e maltrapilho, ao ponto de ser capaz de se deitar e adormecer em qualquer banco de jardim -, é que tive contacto com mais um criador, incapaz de cumprir as regras que lhe impuseram (a história que o irmão contou da sua passagem pelo serviço militar obrigatório no começo dos anos 1960, em Moçambique, com dezenas de fugas e dezenas de prisões, explica muito bem que era demasiado livre para viver "engaiolado"), num mundo que não era o dele. Talvez esta fosse mesmo a sua única certeza...

Devia ser um desses "loucos" que por vezes passam por nós e nos oferecem uma frase poética, a que nós, se estivermos bem dispostos, retribuímos com um sorriso, mesmo tímido, sem sabermos muito bem como reagir.

E não tenho grandes dúvidas que são as pessoas como o Sebastião Alba, que vivem na rua, que melhor conhecem o Sol (e a Lua, claro). É por isso que este título não deixa de ser feliz, servindo de feição o objecto biográfico deste singular documentário biográfico.

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quarta-feira, novembro 22, 2023

Uma memória de Fernando Maurício e da Mouraria


Quando passo na Mouraria, recordo sempre um momento especial, vivido muitos anos antes daquele bairro castiço se ter transformado quase numa "nova Índia"...

Mesmo sem nunca ter sido uma "ave nocturna", era normal que no começo dos anos 1980, com vinte anos, sentisse curiosidade em visitar e entrar na noite lisboeta. Era o que acontecia quase sempre à quinta-feira (gostávamos de fugir das confusões de fim de semana).

Felizmente tinha dois ou três amigos que tinham "livre-trânsito" nas principais casas nocturnas da Capital. Quando saía com eles sabia que não precisava de estar filas, muito menos correr o risco de ser barrado à entrada do "Frágil", do "Trumps", do "Kremlin", da "Lontra" ou do "Alcântara-Mar". Mas também descobríamos lugares completamente diferentes, entre as quatro e as seis da manhã (enquanto não chegava a hora da primeira barca que nos levava para o outro lado do rio...).

O mais curioso, é não me recordar muito desses lugares mais dançantes (o "Trumps" é a excepção que confirma a regra, por ser completamente diferente dos outros espaços...). No entanto houve outros espaços que me ficaram gravados, por serem menos barulhentos e mais castiços. Como a "Mascote da Atalaia", no Bairro Alto, onde se cantava o "fado vadio" de uma forma completamente improvisada.  Ou o "Bar das Velhas" (não era este o nome, ficava numa das ruelas de Santa Catarina e era gerido por duas irmãs, mulheres bem maduras...) Passo algumas vezes pela sua rua e sei que agora é outra coisa, ao contrário da "Mascote", que continua agarrada ao fado, embora se tenha modernizado e tenha pouco da tasca desse tempo.

O que nunca mais consegui encontrar (e passo inúmeras vezes pela Mouraria...) foi a taberna, onde numa noite, desses já longínquos anos 80, tive a felicidade de ouvir cantar um dos grandes fadistas lisboetas, Fernando Maurício.

Mal ele começou a cantar a sua "Igreja de Santo Estevão", naquela tasca repleta de gente, apenas a dois ou três metros de mim, arrepiei-me de imediato. Acho que nunca mais voltei a sentir nada assim, foi como se a sua voz entrasse dentro de mim. E quando acabou de cantar, agradeceu os aplausos e disse estar muito feliz por ver por ali tantos jovens, presos ao fado, olhando para onde eu estava com o meu grupo de amigos.

Apesar de se "vender" a Mouraria de hoje como um lugar perigoso, não sinto qualquer animosidade, quando passo naquelas ruas, mesmo nas que cheiram mais a caril e a chamuças...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


terça-feira, novembro 21, 2023

Memória das palavras da Augusta "Maluca" (cheias de sabedoria...)


Chamavam-lhe Augusta "Maluca" e foi das poucas pessoas da aldeia a ultrapassar os cem anos, ainda que por pouco tempo.

Já muito curvadinha, aquilo que menos gostava era de depender dos outros, foi por isso que nunca deixou de viver na sua casa, que ficava ao lado da de um dos seus filhos. O mais curioso, é que apesar de se dizer raios e coriscos dela, sempre se deu lindamente com a nora, que a recorda com um misto de saudade e emoção, por ser uma daquelas mulheres que nunca deixou de dizer o que pensava, mesmo quando tal era quase proibido.

Por ter jeito para a costura, era muito procurada na aldeia para fazer vestidos e até fatos de homem, mesmo para gente que vivia fora. O seu humor, que se confundia com a "má língua", era conhecido por todos, mesmo que nunca falasse da vida de ninguém. Falava sim, da vida de todos, em geral. Mesmo sem ter qualquer noção política, sabia, e dizia, para quem a queria ouvir, que o mundo estava muito errado, nunca iria perceber porque é que uns tinham tudo e outros tinham nada. 

Mas a sua coragem também era física. Não podia ouvir falar de padres e de religiões, porque na adolescência o padre da aldeia tentou colocar a mão onde não devia. Reagiu de imediato, dando-lhe um empurrão, deixando o padre caído no chão da igreja. No dia seguinte ele andava com o braço ao peito e cabeça baixa. Foi apenas mais uma das histórias da Augusta que correu mundo, e que foi exemplar para todas as jovens mulheres das redondezas.

Onde eu já vou e só queria falar de uma frase que lhe é atribuída, quando nas férias grandes, um dos netos estava triste, porque os pais de um miúdo da cidade tinham-no proibido de brincar com ele. Augusta não foi de modas e disse-lhe: «Não te preocupes filho, eles são ricos mas têm todos cara de parvos e pele cor de rosa como os porcos.»

Não sei se a frase correu mundo, sei apenas que chegou à minha cidade e nos deixou a todos com um sorriso no rosto.

Sempre existiram pessoas assim. Agora é costume dizer que "são fora da caixa", mas noutros tempos, eram apelidados de "malucos", por dizerem sempre o que pensavam, por muito que chocasse quem os rodeava.

Não é por acaso que, ainda hoje, quando se referem a esta Senhora, a tratam como a Augusta "Maluca"...

(Fotografia de Luís Eme - Sobreda)