Muitos romancistas gostam de falar da ficção como algo tão rico, que consegue superar a própria realidade.
Percebo que quem não escreva, tenha alguma dificuldade em perceber isso. Os mais cépticos até poderão pensar que se trata de mais uma "ficção". Mas não, quando se inventa uma história, podemos e devemos ir sempre mais longe que na "vidinha", penetrar pelas zonas escuras, abrir portas e janelas, ir ao mais fundo de cada um de nós...
Lembrei-me disto a propósito da última conversa que tive com um amigo, solteirão e bem parecido, já reformado que vive sozinho, se esquecer o seu querido cão.
Não lhe fiz perguntas, até por não andar à procura de nenhuma personagem parecida com ele. Foi ele que quis desabafar, ir à procura da vida que deixara para trás. Percebi que há muitas coisas que ele não sabe explicar, mas também não quer pedir ajuda ao Freud ou a outro estudioso das tais "áreas cinzentas", que tentamos fingir que não existem.
Falou-me do pai, que morreu novo. De ele ser desde muito cedo, o principal sustento da família. Do medo de ter a sua própria família, de nunca ter pensado a sério em ter filhos. Os irmãos mais novos tinham sido uma chatice... De nunca ter tido problemas em arranjar namoradas. De se ter apaixonado duas ou três vezes, sempre pelas mulheres erradas (já eram de outros...). Uma delas ainda o partilhou durante algum tempo, mas ele nunca se sentiu bem na pele do "outro". E acabou tudo quando ela ficou grávida do primeiro filho. Ainda hoje consegue "inventar" parecenças no tal rapaz, que hoje é um homem maduro...
Antes de nos despedirmos disse-me, com um sorriso, que me contara coisas, que nunca dissera a ninguém.
Sem ele saber, ofereceu-me bastante "material" para compor uma personagem.
E sei que se escrever sobre alguém parecido com ele, posso ir ainda mais longe, porque não estarei a referir-me a ninguém em especial...
(Fotografia de Luís Eme - Almada)