Não deve ser um fenómeno só de Almada, a existência de várias pessoas, que conseguiram ultrapassar os cinquenta anos, sem se afastarem das drogas leves e pesadas.
Há um casal que mora relativamente perto de mim, que se têm aguentado, de várias formas, nem sempre honestas, mas lá vão sobrevivendo... Que eu saiba, tanto um como outro, numa trabalharam, pelo menos num emprego das nove às cinco.
Ele é extremamente activo, anda sempre aqui e ali, a encher o carro de tralhas que leva para a Feira da Ladra, às terças e aos sábados, onde tenta fazer algum dinheiro. A mulher é mais fina, durante algum tempo percebi que quase se oferecia para ajudar algumas velhinhas a atravessar a rua, sempre com uma grande conversa, com laivos de "banha da cobra", como pude testemunhar várias vezes no café.
O mais curioso é que hoje foi a primeira vez que ela falou comigo e para me pedir qualquer coisinha para dar de comer às duas filhinhas, perto da porta do supermercado.
Sem dizer qualquer palavra, peguei em cinquenta cêntimos e dei-lhe, mesmo sabendo que nunca teve qualquer filha. Provavelmente eu conheço-a melhor que ela a mim (é o que acontece quase sempre nestes casos).
Mesmo sabendo que a sua vida sempre foi um "truque", não deixei de olhar para as duas mulheres diferentes, a que antes passava a vida no café de perna traçada, a contar histórias de embalar a velhinhas, e a de agora, que se tornou numa pedinte, a pedir auxilio para as filhas que nunca teve, com uma daquelas vozes que fazem chorar as calçadas.
As únicas dúvidas que não tenho é que viver nunca foi fácil. O problema é que hoje os dias estão bem mais difíceis, para todos, com ou sem expedientes...
O óleo é de Olga Sinclair.