«Deve ter curiosidade em saber como vim parar à rua.»
Não tinha. Mas preferi não responder à frase irónica. Limitei-me a dizer-lhe que a vida é quase sempre mais complicada do que parece.
«Tenho duas versões e nem sempre sei qual é a verdadeira. A número um era que estava farto da vida que levava, demasiado certinha. A número dois foi que não aguentei o rombo que levei com a troika, desemprego seguido de divórcio.»
Eu tentei ajudar: «Talvez seja um pouco das suas...»
«Talvez sim, talvez não...» O homem continuava a jogar com as palavras. Podia estar errado, mas fiquei com a sensação de que estava a dizer-me que não devia falar do que não sabia...
Foi quando o homem começou a querer dar-me quase um tratado de filosofia.
«Com os problemas a avolumarem-se cada vez mais, a grande vontade que eu tinha era de "desaparecer". Mas desaparecia para onde? Não tinha um lugar, uma pessoa que fosse à minha espera...»
E continuou. Eu estava ali para tudo menos para o interromper...
«Acabou por ser o que fiz. Um dia de manhã sai da casa que ainda partilhava com a minha ex-mulher, apenas com a roupa no corpo e com o dinheiro que pus nos bolsos. Era menos de duzentos euros. E nunca mais voltei. Não trouxe nenhum documento comigo. Estava decidido a "deixar de existir". Acreditava que era possível viver sem cartões de identificação ou sem outra marca qualquer da minha existência.»
«Possível deve ser. Mas deve dar algumas chatices...» Acrescentei eu, agora sim, curioso, mesmo que aquela história não fosse apenas uma invenção.
«Claro que é possível. Ando por aqui e ali, há oito anos. Nem tudo foi fácil, mas passado todo este tempo sinto-me mais livre, mais desligado de tudo. Pode não acreditar, mas é uma sensação de alívio não ter família, não ter um lugar, não ter nada, a não ser o que trago junto ao corpo. Agora sim, posso dizer que vivo sem existir.»
Apetecia-me fazer-lhe uma dúzia de perguntas, destruir-lhe aquela leveza, aquela ficção de "viver sem existir", mas não fui capaz. E também não tive tempo.
Porque, entretanto, foi ele que se levantou. Agradeceu o café com uma vénia e sem mais palavras virou-me as costas, escapando pela primeira esquina que lhe apareceu à frente.
(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)