Como expliquei na resposta a um comentário, o conto que escrevi para o livro, "Contos do Portugal Profundo", é grandito. Mesmo assim resolvi ir ao encontro de duas frequentadores dilectas do "Largo", que mostraram interesse em ler a história, publico aqui os dois momentos que acabaram por contribuir para o título da ficção ("Despedidas à Francesa num Outro Portugal"). Um hoje. E outro amanhã...
«[…] Na Vila perdeu-se um pouco pelas
ruelas, quase desertas, até que entrou num café, decidido a petiscar qualquer
coisa. Um dos pratos do dia era ervilhas com ovos escalfados, algo que não
comia há muito tempo. Não pensou duas vezes na escolha da ementa.
No final, quando saboreava o café, foi
surpreendido pelo olhar vivo de uma mulher da sua geração, cujas rugas
indiciavam que poderia ter um ou dois anos a mais que ele. Mas ela não se
limitou a olhar, foi-se aproximando e fez-se mesmo convidada para um café, como
se estivessem numa daquelas casas onde os homens pagam bebidas às mulheres.
Ao perceber que ele não estava com muita
vontade de falar, fingiu não se preocupar e fez quase todas as despesas da
conversa. Esperta, começou por o provocar e fazer sorrir, quando tentou
certificar se o gato da vizinha Aurora também lhe comera a língua.
Disse ser uma Eva e quis saber quem era
ele. Ofereceu-lhe o segundo nome, Manel, o que foi aproveitado para ela misturar
logo um pincel na conversa, em mais uma tentativa de deixar mais à vontade.
Naquele momento não sabia muito bem o que
pensar da mulher, com o tal nome original que alguns homens fingem acreditar, que
foi uma criação por Deus… Mas era impossível passar ao lado da sua lata…
E ela lá continuou a falar sem parar. Queria
saber coisas do homem que se ia tornando um mistério, por não lhe dizer
praticamente nada do que lhe apetecia ouvir. Foi quando Eva lhe explicou que
podia mentir, inventar uma vida, acrescentando que às vezes era uma boa maneira
de se sonhar acordado. E sem deixar que a interrompesse afirmou que todos mentimos,
todos escondemos alguma coisa. Foi quando ele sorriu de novo, por ser verdade e
também por ter à frente uma mulher que parecia não desistir às primeiras às
segunda e às terceiras.
Talvez fosse professora de filosofia, ou
então psicóloga, daquelas que fartas de ouvirem as histórias dos outros, se
resolvem libertar nos lugares mais insólitos e oferecer quase todas as palavras
do mundo a desconhecidos.
Ela insistiu e foi ainda mais longe na
descodificação que fazia da natureza humana. Falou do medo, da impotência, da
solidão, da perda… Metia-se com ele, talvez por sentir que ele fingia não ser
grande adversário, E era verdade. Naquele momento estava ali sentado, com a mesma
sensação de estar a assistir a uma peça de teatro ou a um filme. E como sabia
que o silêncio era de ouro nos momentos em que a arte se confundia com a vida,
não perturbava nem um pouco o “monólogo” da Eva…
Numa última tentativa de lhe arrancar
alguma coisa dos bolsos de dentro, onde se escondem os sonhos e pesadelos, Eva
contou algo que, segundo as suas palavras, nunca tinha dito a ninguém. Pensava
cada vez mais vezes que talvez tivesse sido melhor ter uma vida calma, de ser
apenas mãe e dona de casa. Ter uma vida mais parecida com a da avó que com a da
mãe, que também teve de trabalhar a vida quase toda fora de casa… E foi ainda
mais longe. Olhou para outra mesa mais distante, com dois adultos e duas
crianças, e falou-lhe de uma família, que poderia muito bem ser a sua, se…
Foi o único momento em que se sentiu quase
obrigado a dizer alguma coisa. Com um sorriso leve afirmou que adoramos
desculpas, quando todos estamos sempre a tempo de mudar. Sem se deixar
interromper, disse que a vida tem o condão de nos oferecer mais que um caminho,
tanto podemos dar um passo em frente, dois para o lado ou um para trás.
Depois das suas palavras apareceu o
silêncio. Os segundos que se seguiram pareceram minutos. Foi como se ele quebrasse
a magia do “monólogo” anterior.
Foi neste momento que Eva fingiu ir à casa
de banho e desapareceu.
Só dez minutos depois é que percebeu que
ela não ia voltar… Ainda ficou por ali a pensar, pelo menos outros dez
minutos, novamente com a máquina do tempo a fazer marcha atrás, e sem grande
esperança de a voltar a olhar.
O mais curioso foi ter gostado de a
conhecer, mesmo que soubesse que era provável nunca mais se encontrarem, em
qualquer parte incerta, porque como lhe confessou, quando ensaiou a despedida,
estava ali apenas de passagem. Depois ela desculpou-se, quase à homem, que ia
fazer uma “mija” e já voltava.
Mas desapareceu…
Talvez fossem as suas palavras que quebraram
a magia da conversa, comandada pela mulher, do início ao fim.
Foi acordado nas suas deambulações pelo
olhar de uma outra mulher, que entrou à procura de alguém e saiu. Sorriu
novamente, mais pelo presente que pelo passado, porque há muito que não o
olhavam de uma forma estranha, e muito menos se faziam convidados para a sua
mesa. [...]»
(Fotografia de Luís Eme)