Foi durante as férias, no começo de Agosto, que recebi o convite irrecusável de secundar o meu avô paterno, na sua principal actividade comercial. Disse logo que sim. Na manhã seguinte viajei para a cidade, para me despedir do emprego "seguro" e medíocre", de escriturário de terceira...
O avô Xico já tinha ultrapassado os setenta e continuava a sua vida feliz e errante de feirante, de Norte a Sul, enchendo de preocupações a avó Lurdes. Após as habituais pressões familiares, o avô ofereceu-se para cobrir o meu ordenado de funcionário público, promovendo-me a seu chófer particular, ajudante de campo e confidente nas horas pardas do negócio.Os meus pais torceram o nariz na altura mais acabaram por se habituar à ideia. Embora sonhassem com outro futuro para mim, preferiam que o companheiro de aventuras do avô fosse da família e não um estranho.
Já tinha conduzido meia-dúzia de vezes a velha "ford transit", que hoje seria imprópria para consumo, graças à ASAE... só não conhecia a preceito o "Senhor Xico" da venda, a personagem carismática, adorada por clientes e colegas, devido à sua simpatia e graça natural, algo que não se aprende em nenhuma escola.
Durante quatro anos fui orgulhosamente o condutor da carrinha e o montador do estaminé nas feiras que faziam parte do nosso circuito comercial. Ao avô cabia o papel principal, vender o queijo da serra, com a lábia e os truques de quem nasceu para o ofício. A frase, «melhor que isto não há», fazia milagres, tal como o facto de ter sempre um queijo aberto para a "prova dos nove".
Foi bom conhecer o verdadeiro "mundo" português. Ainda hoje recordo as nossas almoçaradas em tascas bem povoadas de mulherio, a quem ele fazia sempre questão de apresentar o neto, sem se esquecer de lhes piscar o olho, apelidando-me de "fresquinho e competente para atacar quaisquer curvas..."
Para trás ficou o certinho e desesperante funcionalismo público, que não me deixou qualquer saudade. A única coisa que não funcionava em câmara lenta, eram as bocas sujas dos meus colegas. Passavam o tempo a "cortar na casaca" do chefe, que bajulavam assim que ele pisava o soalho da secção. Fiquei sempre com a sensação que tinha tido a "sorte" de trabalhar com o melhor coro de hipócritas e lambe botas da repartição...
Pouco tempo depois de mudar de vida, percebi finalmente o sentido da expressão: «não há vida como a do campo».
Um dia o avô começou a sentir umas dores, que se foram agudizando, que acabariam por o deixar quase fechado em casa, colocando fim a quatro anos memoráveis, recheados de mil e uma aventura no mundo especial das feiras.
Como estava longe de ser um vendedor, lá tive mais uma vez de mudar de profissão. A única certeza que tive nesse momento, era que funcionário público, nunca mais...
O "Mercado das Caldas" é da autoria de Mártio pintor almadense.