Fiquei ali sentado a ouvir aquele piano de cauda, que me oferecia música, graças a um rapaz, que minutos depois vim a saber que tinha tanto de talentoso como de estranho.
O meu filho contou-me que ele era o Filipe, filho de um casal amigo que perdera de vista nos últimos anos. Sabia pouco dele. A única coisa que tinha sido assunto de conversa em casa, foi que saíra de casa aos dezoito anos, para ser músico profissional, e pouco mais...
Acabámos por ficar à conversa. Sei que fui demasiado indiscreto, propositadamente. Quando lhe perguntei onde vivia, respondeu-me com algum sarcasmo: «Onde vivo? Não se preocupe, que não vivo debaixo da ponte. Quando se tem pais que não prestam, há quase sempre uma avó ou uma tia caridosa, que olham por nós e nos ajudam a crescer.»
Estava a ser injusto. Um dia iria perceber isso...
Ele tocara qualquer coisa muito suave, próximo do blues, dando voz a uma ou outra melodia, como se cantasse apenas para ele. Quando quis saber o que tocara e cantara, porque uma ou outra coisa me tinham parecido familiares, explicou-me: «Toquei coisas minhas e também de outros. Cantei um pouco de Marvin Gaye, pouco mais que um verso... apeteceu-me. Continuo a gostar de músicas que me fazem sonhar e gosto de coisas suaves e lentas. Gosto por exemplo de João Gilberto e de Marvin Gaye porque não gritam a cantar, quase que sussurram...»
E foi ainda mais longe: «Quando toco a solo gosto de tocar coisas suaves. Deve ser por isso que, antes da pandemia, trabalhava como músico de um bar de hotel, duas vezes por semana. Só punha o piano a gritar quando era preciso acordar uma ou outra pessoa e convidá-las a irem para o quarto.»
E depois ofereceu-nos um sorriso.
Fiquei por ali a pensar, nesta coisa estranhas de se querer ser músico, actor, bailarino, escritor ou pintor, enquanto os dois rapazolas foram à vida deles.
Com todas as dificuldades culturais que vieram à "superfície", graças à pandemia, é possível que muito jovem de talento, volte a uma segunda opção, prefira estudar engenharia, biologia ou história, ficando a arte com as horas mortas.
A não ser que queiram muito, muito mesmo, fazer qualquer criativa e singular, como o Filipe...
(Fotografia de Luís Eme - Alentejo)