segunda-feira, março 18, 2024

Bocados nossos que colamos às personagens...


Abri o romance que escrevi há mais de trinta anos, na página 35, com vontade de ficar surpreendido. Não fiquei. Depois dei um salto para a página 64, continuava a ser futebol a mais para o meu gosto. Até que dei um "pulo" até à 81 e vi o Tejo. Foi por isso que li em voz alta:

«Olhou a janela do quarto da residencial, descobriu uma rua pouco movimentada que o confundia. Ao longe esperava-o um quadro diferente, o Tejo das horas boas e das horas más.

Voltava a sentir um desejo avassalador de percorrer as ruas de Lisboa e olhar ninfas que prometiam coisas que nunca cumpriam. Parar em esplanadas carregadas de inúteis que apenas sabiam contar anedotas com barbas e conversar sobre o tempo. Queria embarcar num cacilheiro e navegar no rio grande que transformava a capital numa ilha.»

Raramente falo sobre o que escrevo. Acho que isso acontece por achar que não é dos melhores assuntos de conversa. Mas desta vez abri uma excepção e falei de muitas coisas que estavam dentro do livro. Já não me lembrava da maior parte das personagens, mas mesmo assim admiti, que andamos anos a enganar-nos, a fingir que inventamos personagens a partir do nada nas histórias que escrevemos, como se isso existisse. Mais tarde descobrimos que cada uma delas tem sempre um bocado de nós, por muito pequeno que seja...

Outra coisa que fazemos é escolher traços das pessoas que gostamos para serem "bons da fita", e dos outros, que passamos bem sem lhes pôr a vista em cima, para fazerem de palermas ou de bandidos.

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


2 comentários:

  1. Sou um leitora militante e pelo que deduzo não há ficção que não parta do real.

    Abraço

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    1. Pois não, Rosa.

      Além de partir do real, às vezes ainda consegue ser mais autêntico...

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