terça-feira, março 12, 2024

O primeiro episódio das "conversas que se dizem quase ao ouvido"


Talvez por eu não o tratar como um maluquinho, muito menos me preocupar muito onde começava e acabava a ficção que se misturava com as suas memórias, ele não parou de me contar as suas inquietações.

Não sei porquê, mas fixei-me nessa palavra bonita que é a liberdade, enquanto ele me falava das suas duas "casas" na Capital:

«Sei que devo estar a sonhar ou a imaginar coisas, mas penso muitas vezes que a barraca que construi e fui viver depois de casar, e onde nasceu o meu primeiro filho, era melhor que esta casa de cimento.

Esqueço-me do frio, do calor, da falta de luz eléctrica e de água canalizada, e de tantas outras coisas, que eram tão más e feias, que apaguei-as mesmo da minha cabeça.

A única coisa que me ficou foi a sensação de liberdade que existia. Acho que por não ser uma casa a sério, tornava tudo mais fácil. E também sabia que era difícil viver pior. E sorria com isso... É por isso que às vezes penso que devo estar a amalucar.»

Expliquei-me que não. Provavelmente ele foi feliz naquela barraca, mesmo que fosse tudo demasiado pobre e miserável. E só se lembrava dessa sensação, que há distância de 40 e muitos anos, lhe parecia uma outra coisa...

Nota: Vou chamar a estas conversas, "Coisas que se dizem quase ao ouvido", que nascem do diálogo que tenho com algumas pessoas que gostam de falar sem "travões" e nos contam toda a história da sua vida, mesmo sem lhe pedirmos...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


2 comentários:

  1. Reconheço-me nesse grupo dos sem travões!

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    1. De vez enquanto cruzo-me com pessoas assim, Tintinaine.

      No início estranho mas depois torna-se agradável.

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