sábado, janeiro 01, 2022

"A Criança e a Vida"


Por saber que a maior parte dos livros que temos, acabarão por ter a má sorte de não serem lidos, às vezes apenas por terem o selo de "esquecidos". Podem passar anos e anos numa estante (se tiverem pior sorte, podem ficar mais escondidos, dentro numa caixa de papelão guardada no sótão ou na garagem...), foi por isso que fiquei extremamente feliz por uma colectânea que deu muito que falar, ainda antes de Abril (a primeira edição até acabou por ser apreendida...), me ter feito um sinal.

Falo de "A Criança e a Vida", uma colectânea organizada por Maria Rosa Colaço e escrita pelos seus alunos da escola primária onde começou a dar aulas, em Cacilhas.

No seu texto de apresentação ela explica muito bem como foi o seu primeiro dia de aulas: 

«O silêncio que me envolveu era um silêncio pesado, expectante. E no meio do silêncio, eles ali estavam, na manhã que nascia: esculpidos em vento e mar.
Vinham dos barcos ancorados no cais, do bairro de lata, de sabe Deus donde. Traziam nas mãos, em vez de mala e livros - não sei porquê mas traziam - folhas de plátano douradas. O Outono perfumava-lhes os cabelos.
Eram sementes vivas da mais autêntica liberdade e não sabiam nada de preconceitos, nem de palavras, nem de coisa nenhuma.
Olhei-os também em silêncio. Um por um. Longamente. Depois, peguei na régua-apoio que o director me oferecera e dei-a ao que me pareceu mais velho: "Toma! Vai atirar fora." E depois... não o que lhe disse. Mas a fome de ternura era neles como o sol, a chuva e o desconforto. E como éramos primários, pobres e sozinhos, estabelecemos desde aquela hora um entendimento lúcido e discreto. E foi assim que ficamos solidários e Amigos-para-sempre.
Aprendi então que a verdade é uma palavra essencial.
E a lealdade também.»

Sei que o conteúdo do livro pode ter sido "amenizado" pela professora, mas não deixa de ser um documento histórico, que foi traduzido e editado em dezenas de países. E inédito, uma professora dar voz aos alunos em plena ditadura, tem muito que se lhe diga... 

(Fotografia de Luís Eme - Ginjal)


6 comentários:

  1. Boa tarde
    E como me lembro bem da régua e da cana de bambu dos anos sessenta. Mas também tive quem não as usasse.

    JR

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  2. Foi um dos livros muitas vezes analisado nas suas frases poéticas nas minhas aulas!

    Abraço

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  3. Fiz toda a minha escolaridade antes do 25 de Abril. Só a Faculdade é que foi em 86...
    Como falava pelos cotovelos ( era filha única e não tinha primos ) fartava-me de levar réguadas por estar sempre a falar....a minha professora da primária não me era muito querida mas ensinava muito bem. Ainda me lembro da cara dela, ao fim destes anos todos. E ela morreu praticamente a seguir ao final da minha 4a.classe. E fui ao funeral dela! Foi o meu primeiro funeral e foi uma experiência muito marcante para mim!

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