segunda-feira, novembro 23, 2020

«Despimos diariamente a pele das personagens. Nunca deixámos de ser pessoas.»



Nos últimos meses mudei de café, apenas por ser um lugar mais sossegado para saborear a bica depois do almoço (só lá para o fim da tarde princípio da noite é que aparece a malta "alternativa", que há 30 anos que anda vestida de preto (nunca lhes perguntei mas talvez se sintam "viúvos" e "viúvas" deste país...).

Não falo com a maioria deles. A única justificação que encontro para este "desencontro", foi nunca ter pertencido aos seus "mundos" (nunca embarquei em ondas psicadélicas e sempre fui uma "ave lunar"...). O seu olhar marcado, com olheiras que quase chegam ao pescoço, faz-me pensar que devem ter passado ao lado de mais de metade dos sonhos. Sonhos que passaram quase sempre pela música. Meia dúzia deles ainda tocam em bandas, mas o que ganham quase nunca deu para o "gasóleo". Todos aqueles que quiseram ter vida própria (há quem tenha optado por continuar a viver na casa dos pais, como se aos cinquenta continuassem eternamente adolescentes...), tiveram de arranjar uma segunda profissão.

A Glória é das poucas pessoas com quem falamos, um pouco mais que o bom dia ou o boa tarde. Ela também quis ser cantora, mas nunca se iludiu muito e continuou a estudar, psicologia, e hoje trabalha no Município de Lisboa. 

Ela bem poderia dar uma ajuda aquela malta, mas nenhuma das partes está muito interessada nisso. É caso para dizer: "Vivam os sonhos!"

E foi por causa dos sonhos que ela me falou de um trabalho de investigação que está fazer, que acaba por se intrometer nessa coisa tão na moda, que é o ser-se "famoso", e que é cada vez mais difícil de definir. Tem dezenas de entrevistas feitas. A maior parte das pessoas com quem falou (músicos, actores, escritores e pintores, todos com carreiras sólidas...), passa um bocado ao lado da "fama", que chamam "televisiva". E dizem que isso é mais coisa das carinhas larocas que fazem telenovelas e publicidade, que gostam de encher as revistas e as redes sociais com bocados do corpo e mexericos com namorados.

A maior parte dos actores e actrizes (e também alguns músicos mais populares) disseram, utilizando palavras diferentes: «Despimos diariamente a pele das personagens. Nunca deixámos de ser pessoas.» Acrescentou que os escritores e pintores nem sabem muito bem o que é isso de se ser famoso. E muito raramente alguém fala com eles nas ruas sobre as coisas que fazem.

Não me deu nenhuma novidade. Mas a frase mais metida com o mundo dos teatros, ficou cá dentro. 

Mas não deve ser fácil deixar todos os dias a "pele" da personagem, pendurada no camarim...

(Fotografia de Luís Eme - Almada)


11 comentários:

  1. Uma descrição muito interessante desse género de jovens que ficam eternamente "adolescentes"...
    Quanto à fama, coisa vã, creio que as pessoas que realmente a merecem não se deixam levar por ela...
    Uma boa semana com muita saúde, meu Amigo Luís.
    Um abraço.

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    1. Crescer é um problema grande, Graça.

      A vida também pode ser um conjunto de chatices. :)

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  2. Excelente crónica esta!

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  3. A minha filha, quando tinha 15 anos, foi gótica e também namorou um músico, gótico como ela. Mas foi uma fase.
    Hoje, tem quase 30, e passou-lhe....😊

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    1. Quer dizer que ela não interiorizou bem a "filosofia", Maria. :)

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    2. Quer dizer que ganhou juízo! E foi ela a decidir, sem a intervenção da mãe 😊

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  4. Graças a Deus o meu filho nunca teve sonhos desses.
    Abraço e saúde

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    1. Não sei se foi Deus que o "salvou", Elvira.

      Devem ter sido mais as companhias, os amigos de infância e adolescência.

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  5. Não sei se deixam, afinal todos representamos, todos participamos no teatro da vida!

    Abraço

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    1. Pois, Rosa... Alguns quase que são obrigados a deixar as personagens, para voltar à vidinha...

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