Quando me surge uma ideia maluca, daquelas que podem resultar no mundo estranho da literatura, escondo-a quase sempre dos blogues.
Mas hoje, ao passar os olhos por um dos cadernos onde guardo algumas personagens, houve uma que quis mesmo sair e ir dar uma volta até pelo Largo. Fiz-lhe a vontade...
«Aquele homem, que não conhecia de sitio nenhum, disse-me em jeito de segredo, que desconfiava que Deus era mesmo capaz de existir.
E começou a contar-me a sua história:
- Eu estava desempregado e acabei por ter a ideia luminosa de me fazer passar por coxo no metro de Lisboa. Coloquei uma palmilha desconfortável num dos sapatos, muni-me de um par de canadianas e aí andei eu, sempre com a mesma lengalenga: a pedir qualquer coisa para comer.
Sorriu antes de continuar:
- Às vezes davam-me os lanches, que aceitava muito agradecido, para não estragar o número com a soberba. Só não sabia o que vinha a seguir...
Coçou a cabeça e olhou para o chão antes de continuar:
- Passadas duas semanas, ao tirar a palminha do sapato e andar por ai, senti que continuava a coxear. Pensei que passava mas não passou. E nunca mais parei de coxear, mesmo sem canadianas. Já tinha ouvido falar que Deus está mais atento do que parece à nossa vida, e que castiga quem se porta mal, etc. Mas porra, eu só fiz isto por precisar mesmo de dinheiro para sobreviver. Nem sequer roubei ninguém. E só me dava esmola quem queria. Sabe, se pudesse gostava de ter uma conversa com esse tal Deus, que nem sequer sei se existe.
Eu cada vez menos dado a religiosidades, ofereci-lhe um cigarro e paguei os nossos dois cafés, mesmo sem ser parente de qualquer deus.»
(Fotografia de Roger Schall)
Muito interessante. Eu não acredito num Deus castigador. Acredito em Deus, mas num Deus castigador, sempre de olho em nós para nos mandar uma qualquer maleita se pecamos, definitivamente não. Mas foi nessa ideia que fui criada. Sempre ouvia aos mais velhos "Muitas graças a Deus, poucas graças com Deus" E lembro-me que meu tio António, tinha uma motorizada. Um dia ia sair e quando disse até logo, minha mãe, que era sua irmã, disse-lhe "Vai com Deus" E ele respondeu "Vou sozinho que não tenho capacete para ELE". Nessa noite ele teve um acidente e foi hospitalizado. Acredito que foi uma coincidência e que teria tido o acidente mesmo não tendo dito nada do que disse. Mas para toda a família aquilo foi castigo de Deus. E nem queira saber as histórias que ouvi a família e os vizinhos contarem de castigos divinos.
ResponderEliminarUm abraço
É difícil não acreditar num Deus castigador, com tudo aquilo que nos cerca, Elvira.
EliminarVoltamos sempre à mesma questão: «Porque razão uns têm tudo e outros nada?»
Não seja tão cioso das suas personagens "malucas" e não queira resguardá-las dos olhares de quem passa pelo Largo, Luís!
ResponderEliminarMesmo que um dia queira dar-lhes vida e expô-las nos escaparates de uma livraria, pode fazê-lo na mesma.
Aprisioná-las, é pensar que os passeantes do Largo não as merecem, é isso é tremendamente injusto. :)
Ainda bem que deixou sair este homem! Goatei de o conhecer. Ele fez-me sorrir. E, quem se vai recolher sou eu, mas para meditar...até que o sono chegue!
:)
Janita
Vou tentar, Janita. :)
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