Descobri o Macário por um mero acaso. Mas foi uma boa descoberta, em apenas meia hora descobri uma personagem lisboeta que cabe num daqueles romances que se podiam escrever sobre uma Lisboa, povoada de cenas dignas do tão apaixonante realismo mágico.
A exuberância com que entrou na tasca onde almoçávamos, com o seu corpo trabalhado no ginásio do Ruca quase a dançar e a fazer saltitar o fio grosso de pechisbeque de cor dourada, não deixou ninguém indiferente. Parou na nossa mesa para dar um beijo ao padrinho. O Manel perguntou-lhe se já tinha almoçado, ele disse que não, acrescentando que ainda lhe faltava o pequeno almoço, com uma piscadela de olho e foi ao balcão comprar um maço de tabaco. E depois partiu como chegou com a mesma dança no corpo, com umas calças brancas apertadas e uma camisa colorida, que poderiam colocá-lo numa lista de suspeitos que se amanhavam com a "paneleiragem", como quase nos segredou o Vitor, à espera da reacção do dito padrinho...
O Manel sorriu e disse que o Macário não rejeitava carga, desde que lhe pagassem uns trocados para continuar com a sua vida boa. Mas preferia mulheres, "camones", que ensinava a dançar nas pistas dos clubes nocturnos e nos quartos de hotel.
E depois ofereceu-nos a sua biografia de mão beijada: «Quando um puto cresce no mesmo prédio que acolhe uma pensão de prostitutas e uma casa de jogo clandestino, habitua-se a adormecer a ouvir gemidos falsos tapados por tangos lentos com bons ares. Quando chega e vai para a escola cruza-se com raparigas de mini saia que lhe piscam o olho e homens de camisas garridas que fazem argolas com o fumo dos cigarros, que fingem não reparar nele, pode ter tudo menos uma vida normal.
Não gostava de estudar, mas mesmo assim prometeu a ele próprio fazer tudo para escapar do destino traçado para os filhos das mulheres que passam a vida a esfregar escadas e dos homens que batem chapas de carros batidos. E conseguiu-o. Preferiu ser um "gabiru" ou "moinante", como a mãe ainda hoje lhe chama, quando a visita, a um simples operário. Eu sou o tio que lhe foi aparando as pontas, e passou a fazer a ponte com os pais quando resolveu sair de casa aos dezasseis anos.
Nunca soube muito bem o que ele fazia e faz. Sei apenas que onde quer que entre, toda a gente pára para o olhar, como se fosse uma gaja boa. Gaba-se de dançar e foder como ninguém. talvez seja esta a chave do seu sucesso. Embora seja um daqueles fulanos em que só devemos acreditar em metade do que nos diz, há muita mulher por aí que gosta destas duas coisas e não têm quem as deixe felizes, nos bailes e nas camas.»
Para acabar ainda melhor, Manel acrescentou: «o meu sobrinho tem ainda uma grande vantagem, cresceu naquele prédio cheio de manchas, mas não é filho de nenhuma puta nem de nenhum batoteiro. Isso faz toda a diferença, ele além de ser um sedutor, é um gajo porreiro, incapaz de roubar fios de ouro ou carteiras a quem quer que seja. Toda a gente gosta dele, desde a mulher que já dançou com ele ao dono do bar do fado vadio onde ele canta e encanta, sempre que pode.»
O que mais nos surpreendeu, nem foi o bom do Macário, foi sim o orgulho desmedido que o Manel tem por aquele "doidivanas" que, segundo o seu olhar, preferiu em boa hora ser "cigarra" e nunca "formiga"...
(Óleo de Pike Koch)
Luís, gostei particularmente de te ler neste post. É um registo um pouco diferente do que costumas utilizar e que vai muito bem contigo.
ResponderEliminarE depois há a delicia das vidas à margem, mas que não prejudicam ninguém. Gente formatada a chapa 10 já chateia.
Estes textos dão um bocadinho mais de trabalho, Isabel.
EliminarPedem algum "realismo mágico". :)
Ausente e apenas com um smartphone em que ainda ando a aprender a mexer, só hoje consegui entrar no Largo. E em boa hora entrei que nem sempre se consegue ler um texto tão bom. Um abraço
ResponderEliminarGrato Elvira.
EliminarO que seria de nós sem o canto das "cigarras"?