Podes vir de um outro continente e nunca te habituares a ser europeu. Ou pior ainda, nunca quereres ser isso, mesmo que te deixes enganar pelas vantagens que o passaporte trás. Até porque Paris Londres ou Berlim, ficam quase ali, depois do virar da esquina...
Quando lhe falei destas portas abertas, desculpou-se com a nossa humanidade, de todos nascermos interesseiros, mesmo que seja por uma mera questão de sobrevivência. As contradições ficam num outro departamento, explicou-me ela. Distantes do leite materno do biberão ou de uma simples sopa (sim dessa para pobres...).
Fomos andando e ela confessou ser alheia às bandeiras e os cachecóis que as pessoas usam, muito menos percebe toda a exaltação provocada pelo futebol. Talvez por nunca ter conseguido compreender a graça de ficar a ver vinte e dois homens a correrem atrás de uma bola, capazes de empurrarem e de se pontapearem para a conseguirem meter dentro das redes. Talvez porque há coisas que não se explicam, sentem-se, pensei eu, sem tentar sequer fazer desenhos...
Mesmo dentro da Cidade que escolheu para viver é sempre estrangeira, não consegue sentir nada como seu, nem mesmo o pequeno apartamento onde vive há mais de meia-dúzia de anos. Não culpa ninguém, sabe que é um problema apenas dela.
O mais curioso é afirmar conhecer a única solução para os seus problemas: voltar de onde teve de fugir e para onde continuam a ir todos os sonhos...
O mais curioso é afirmar conhecer a única solução para os seus problemas: voltar de onde teve de fugir e para onde continuam a ir todos os sonhos...
(Óleo de Per Krohg)
Luís, o penúltimo parágrafo podia ser para mim. Tal e qual isto.
ResponderEliminarE agora só ecoa aqui na minha cabeça "Eu sei, mas não devia", da Marina Calasanti:
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.
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Há sempre algo de muito perturbador, cansaço imenso até, nesta questão do desenraizamento - conheço o das cidades e das casas - porque está sempre relacionado com uma anormalidade má.
Aquele poema tem que ver com a sensação de derrota que sente quem vive nessas circunstâncias, se não se deveria fazer mais.
Sim, a gente finge que se acostuma, Isabel. :)
EliminarE gosto quando me ofereces poemas.
EliminarSerá que pertencemos realmente a algum lugar físico? Ou não passará de uma idealização?
ResponderEliminar(adoro a tua escrita)
Claro que pertencemos, Carla.
EliminarHá lugares onde nos sentimos bem, bem...
(ainda bem...)