quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Um Tinto à Minha Mesa


O vinho nosso de cada dia está este ano pior, não sei se por ter sido um ano de má colheita nas terras de onde vem, se por qualquer erro humano que sempre pode acontecer a quem pratica esta alquimia de fazer das uvas vinho, falível como qualquer arte, muito longe de ciência exacta, onde se obtém o mesmo resultado quando se repetem as premissas.
Era um tinto do Baixo Corgo, ainda na Região que o Senhor Marquês mandou demarcar e que já me tinha pregado um susto aqui há três anos, quando resolveu ocultar-se durante algum tempo. Reapareceu pouco depois com roupagem nova, talvez mais janota, e eu que cheguei a temer o pior, mal voltei a vê-lo precipitei-me para ele, mas fiquei tranquilo quando o abri e provei, por ter verificado que mantinha intactas todas as qualidades que me levaram a escolhê-lo, ficando demonstrado, também aqui, que o hábito se não faz o monge também o não desfaz.
Além disso, manteve o preço, numa relação muito virtuosa com a qualidade e com o prazer que me proporcionava e continuou a sentar-se à minha mesa, como era de toda a justiça. Recomendei-o frequentemente aos meus amigos, mas quero crer que não tive nisso muito sucesso, talvez pelo excesso dos adjectivos que usava na sua promoção que fazia duvidar que tantas qualidades coubessem num preço tão modesto.
Este ano foi diferente. Em Outubro começou a rarear, pouco depois esgotou-se nas três grande superfícies onde me habituara a comprá-lo. Que lhe terá acontecido, perguntava eu para comigo e aos empregados que por ali andavam, sem receber resposta mais elucidativa do que o óbvia e burocrático: está esgotado !
Com renovada esperança e a serenidade de um Buda com muitos anos de chá, esperei pela nova colheita mas já com a convicção de que o meu vinho, quando voltasse, iria manter todas as qualidades que tinham determinado a minha preferência e, pelos vistos, a de muitos outros consumidores.
Infelizmente não foi assim e aquele vinho que já considerava meu, como se lhe tivesse granjeado a vinha, pisado as uvas e envasilhado o mosto, chegou ronceiramente pelo Natal, mais baço aos meus olhos o ruby da sua cor, menos redondo ao meu palato um novo e arrevesado gosto, já não salta quando o sirvo, já não cheira às uvas maduras das muitas castas que se juntavam para o fazer e o gosto bom a frutos vermelhos que antes o distinguia, abandonou-o fortemente. Agora está mais pesado, perdeu o melhor da sua juventude e não ganhou nenhuma qualidade de um vinho velho.
Nem sequer é relevante que esteja mais barato um euro, pois quebrou-se a relação virtuosa, essa divina proporção, que manteve durante tanto tempo.
Mesmo assim, mantenho ainda alguma esperança de que num melhor ano de uvas ele volte a ser quem era pois quero atribuir esta expontânea redução de preço à honestidade do seu produtor que reconheceu, antes que alguém lho dissesse, que este ano o seu vinho valia menos.
Vou esperar pela próxima vindima. Vou mesmo rezar aos santos protectores das uvas que as faça boas, doces, sumarentas e cheirosas para voltar a ter o meu vinho tinto da Região que o Senhor Marquês mandou demarcar, de novo jovem, fresco, leve, com aroma a frutos vermelhos, de sabor fresco e equilibrado, parecido com o vinho da minha terra - as mesmas castas, o mesmo chão, a mesma sabedoria - que na minha memória todos os anos se faz e se consome antes de fazer um ano, antes que o calor o tolde e o envinagre.
Oxalá, para aquecer a alma, a um preço justo!

Mais um texto da autoria de Joaquim Nascimento, colaborador do "Largo da Memória", ilustrado pelo famoso óleo, "O Almoço dos Remadores", de Renoir.

6 comentários:

  1. São os tais "pequenos prazeres" qua dão sentido à vida...

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  2. A vida é mesmo feita de pequenos nadas, Zé do Carmo...

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  3. Embora goste mais de branco que de tinto, fico á espera da próxima colheita.

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  4. Há quem prefira, cheio, Alice...

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