sábado, junho 05, 2021

Silêncios Africanos...


O meu tio António quando fala de África, apenas se refere à paisagem local. Tanto pode falar de Luanda, a cidade moderna surpreendente, das mulheres multicolores de uma beleza única, como das florestas também únicas, povoadas de sons e de mistérios. Nunca fala da Guerra.  

O Pedro quase que esqueceu a Angola do tio, mesmo que sejam da mesma idade. Quando o tio foi destacado para a Guerra Colonial, Pedro já estava por cá como estudante no primeiro ano na faculdade de direito... E depois, com o passar do tempo, foi perdendo o hábito e a vontade de falar da África onde nasceu e cresceu. E não é apenas por saber que a sua Angola já não existe...  

Um dia também sonhou com a independência e até foi militante do MPLA. Fez a luta possível por cá, antes de Abril... Era um jovem cheio de ilusões e de convicções.

Ainda hoje não percebe como é que muitos daqueles estudantes marxistas (alguns que tratava como irmãos e com quem convivia diariamente, assim como outros que estudaram em vários países do Leste da Europa), que regressaram à Terra-Mãe com o apelo da Independência, o enganaram tanto.

Ele como continua a acreditar que se o mundo fosse mais igual e justo, toda a gente vivia melhor, tem muita dificuldade em perceber aqueles governantes que abandonaram o socialismo, mal sentiram o "chamamento" do capitalismo. Nunca vai entender quem toma como seu o que pertence a todos.

E eu fico baralhado, sem saber se hei-de confiar no "encantamento" do meu tio António ou no "desencanto" do Pedro. 

Talvez entenda melhor os seus silêncios...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


7 comentários:

  1. Eu acredito num futuro melhor, não tenho uma visão pessimista!
    Eu escolho viver num mundo melhor, onde haja justiça, igualdade, paz e respeito pelo outra, respeito pela vida e pela dignidade de todos!
    Abraço e continuação de um bom domingo!

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    1. Isso era muito bom que acontecesse mas não me parece que vá acontecer. Pelo menos, nos tempos mais próximos. As chamadas novas gerações são ainda mais egoístas do que as mais velhas.

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    2. Sim, é verdade, a qualidade humana está a "piorar", Maria.

      Nem sequer aprendemos com as "lições da natureza", para mudarmos o nosso comportamento. A maioria das pessoas só pensam nelas (nem sequer se preocupam com o que fica para os filhos e netos...) e não tem nada a ver com idades, é tudo uma questão de educação e de exemplos.

      Acho que isto já não tem a ver com optimismo ou pessimismo, a realidade é diferente, Micaela.

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  2. Nada como ler " Predadores", de Pepetela.

    Abraço

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    1. Nunca li nada do Pepetela, Rosa.

      Fica a sugestão.

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  3. Quando pegamos em «A Ilustre Casa de Ramires» do Eça de Queiroz, podemos parar naquele bocadinho em que o economista Gouveia a dizer à Senhora Dona Graça:
    «Tenho horror à África. Só serve para nos dar desgostos. Boa para vender, minha senhora! A África é como essas quintarolas, meio a monte, que a gente herda duma tia velha, numa terra muito bruta, muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra sequer um estanco; só habitada por cabreiros, e com sezões todo o ano. Boa para vender.
    Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:
    - O quê! Vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda?!
    - Quais trabalhos, minha senhora? Era desembarcar ali na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos… Essas glórias de África são balelas.»
    Podemos também pegar em O Retorno de Dulce Maria Cardoso e ler;

    «Hoje é o dia da independência de Angola. Angola acabou, a nossa Angola acabou. Não sei para que estou a olhar para a televisão, não sei por que estou aqui.
    Os homens têm os fumos por cima dos casacos, uma ideia do Pacaça que diz, estou de luto, hoje morreu-me a minha terra, hoje tornei-me um desterrado, vivemos na certeza de que a terra onde enterramos os nossos mortos será nossa para sempre e que também nunca faltará aos nossos filhos a terra onde os fizemos nascer, vivemos nessa certeza porque nunca pensamos que a terra pode morrer-nos, mas hoje morreu-me a minha terra, hoje morreram os meus mortos e os meus filhos perderam a terra onde os fiz nascer, os meus desterrados como eu. O Pacaça cala-se e começa a falar o Sr. Belchior, estou de luto pela terra onde fui gente, antes de ir para lá era uma barriga inchada de fome e uma cabeça cheia de piolhos.»
    Andámos por aí em quezílias, em lutas, cimentando e enterrando sonhos, esperanças. Não consegue esquecer o Mário-Henrique Leiria a dizer-lhe: «Vê lá tu que o Álvaro Guerra deixou-me de falar só porque não sou do partido dele» e andaram os dois, lado a lado, para correr com aquela canalha que durante perto de 50 anos, martirizaram e destruíram vidas.
    E acontece um domingo em que olhamos o baralhanço entre o encantamento do tio António e o desencanto do Pedro.
    O outro dia esbarrou com a palavra anemoia. Os dicionários da casa não o ajudaram. Foi quando alguém lhe disse que é a nostalgia de um tempo que nunca vivemos.

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    1. O curioso, é a estupidez humana não parar de nos espantar, ano após ano, Sammy.

      Depois de tantos anos por aqui, aprendemos muito pouco. Só assim se explica os Trumps e os Bolsonaros (o "nosso" felizmente é um "flopp", mas acredita que ainda vai ser primeiro-ministro. Mas não posso escrever muito, porque o que não falta à nossa volta é gente burra...).

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